Quando o Futebol, o Machismo e o Abuso se Encontram: O Caso Payet e o Espetáculo da Violência Silenciada


No país onde o futebol é religião, jogadores são canonizados como santos acima de qualquer julgamento. Onde há idolatria, muitas vezes há cegueira , e, nesse escuro, mora o silêncio das vítimas. O caso da advogada Larissa Ferrari, que denunciou publicamente ter vivido uma relação abusiva com Dimitri Payet, atual ídolo do Vasco da Gama, escancara não apenas uma história pessoal de dor, mas um retrato social muito mais profundo, sujo e incômodo.

Aqui não se trata só de fofoca, nem de manchete sensacionalista. Trata-se de refletir, com seriedade, sobre o quanto naturalizamos a violência , principalmente quando ela parte de homens ricos, poderosos, endeusados e blindados pela fama.

⚠️ O teatro do absurdo: uma cerimônia, uma fantasia e uma prisão emocional

Em meio a uma narrativa que mais parece roteiro de filme trash, Dimitri Payet , casado há 18 anos, pai de quatro filhos , realizou uma cerimônia de "casamento" com a advogada Larissa Ferrari, no Rio de Janeiro, como parte de uma de suas fantasias sexuais. Uma encenação que, segundo Larissa, rapidamente se transformou numa cadeia invisível, onde ela era submetida a práticas humilhantes, que envolviam desde vídeos em que ela precisava lamber tampas de vaso sanitário até ingerir a própria urina. Tudo sob a chantagem emocional disfarçada de "provas de amor".

E se você, ao ler isso, acha que é "exagero", "história mal contada" ou "coisa de gente doida", saiba que essa reação não é por acaso. Ela faz parte do grande manual social da culpabilização da vítima, que há séculos funciona como combustível para a cultura do abuso.

⚽ A blindagem do machismo: o escudo do ídolo

Quando um homem poderoso é acusado, o roteiro é sempre o mesmo: questionam a sanidade da mulher, sua intenção, sua moral. E, claro, a palavra "interesseira" surge como um mantra coletivo. Afinal, se ela ficou, se aceitou, se se apaixonou, se largou tudo por ele… então "tá querendo aparecer", não é mesmo?

O Brasil, país que coleciona capas de jornais com agressões, feminicídios e violências cometidas por jogadores, parece nunca aprender. Robinho, Daniel Alves, Cuca, Jean… a lista é longa. E a indignação, seletiva.

Quando a denúncia vem à tona, torcedores , majoritariamente homens , correm para defender o ídolo. E não importa quantas evidências, prints, áudios, hematomas, traumas ou lágrimas estejam na mesa: o escudo do time vale mais que a dignidade de uma mulher.

🔍 Mas e ela? Não sabia que ele era casado?

Ah, sim. Sempre a clássica inversão. Porque, numa sociedade misógina, o erro maior nunca é do homem que engana, que manipula, que trai, que agride. O erro é da mulher que "sabia onde estava se metendo". Se ela traiu o marido, então "merece". Se aceitou a condição de amante, então perdeu o direito de sofrer, de se arrepender, de ser vítima.

Só que não é assim que funciona a psique humana , e muito menos as dinâmicas do abuso. Relacionamentos abusivos não começam com tapas. Começam com sedução, encantamento, promessas, dependência emocional, isolamento e, então, gradativamente, se transformam em violência física, sexual e psicológica.

Larissa não é exceção. É retrato de milhares de mulheres que, muitas vezes, só percebem a armadilha quando já estão dentro, sem chão, sem rede de apoio, destruídas.

💣 Quando o fetiche cruza a linha do crime

Existe uma linha muito clara entre práticas sexuais consentidas e a imposição de humilhação como forma de controle e tortura psicológica. E essa linha foi cruzada repetidamente, segundo as denúncias.

O que começou como um jogo de sedução, rapidamente se transformou em um ciclo de castigos, punições, degradação, violência física, pisões, xingamentos e controle. E, aqui, pouco importa se havia afeto, paixão ou desejo. Abuso não deixa de ser abuso só porque foi cometido dentro de uma relação íntima.

📲 A cultura do linchamento seletivo

Larissa Ferrari, além de vítima de violência, se tornou vítima da internet. A mesma sociedade que adora cobrar que mulheres denunciem, é a primeira a apedrejá-las quando o fazem. Os comentários são unânimes: "Tá querendo mídia", "Oportunista", "Só quer destruir a carreira dele", "Ficou com ele por interesse".

Ninguém pergunta quantas mulheres ricas, famosas e bem-sucedidas estão fazendo filas para se submeterem a beber urina, lamber privadas ou apanhar no rosto por puro luxo ou status. A pergunta que deveria ser feita é outra: quanto vale a dignidade de uma mulher? E, mais ainda: por que aceitamos tão facilmente normalizar a violência quando quem a pratica é um homem famoso?

🏴 O preço de ser mulher

Essa história não é sobre Vasco, nem sobre Payet. É sobre o machismo que mata, que adoece, que aprisiona. É sobre uma sociedade que ri do sofrimento feminino, que julga, que ridiculariza, que pergunta "por que ficou?" ao invés de perguntar "por que ele fez isso?".

Larissa, hoje, faz terapia. Busca se curar. E, apesar de estar sendo linchada virtualmente, decidiu expor sua dor, não apenas para lavar a própria alma, mas para gritar às outras mulheres: "Não normalizem o que não é normal. Violência não é amor. Controle não é cuidado. Humilhação não é prova de afeto."

🚩 E o futebol?

O futebol brasileiro precisa urgentemente rever o tipo de homem que ele forma, blinda e enaltece. Porque enquanto transformarmos jogadores em deuses inquestionáveis, estaremos ensinando para milhões de meninos que poder, dinheiro e fama são licenças para violar, abusar e destruir mulheres sem consequências.

📝 Reflexão final

Talvez, daqui alguns dias, esse escândalo suma dos noticiários. Talvez o contrato de Payet acabe, ele volte para a França, reconstrua sua vida, e tudo se apague como uma fumaça que se dissipa. Mas na psique de Larissa — e de tantas outras mulheres — o trauma não expira. Não tem data para acabar.

Se você ainda acha que o problema dessa história é "o que ela fez", "o que ela aceitou" ou "como ela se envolveu", é porque você faz parte do problema. E, talvez, você só não percebeu ainda.

Trago fatos , Marília Ms. 


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