São João não é figurino. É identidade. E o quadriculado não é farda obrigatória


Não existe São João sem quadriculado, dizem por aí. Mas será que não mesmo? Ou será que o que não existe é São João sem pertencimento, sem memória, sem emoção? Porque, com todo respeito ao tecido xadrez que lota vitrines e araras a partir de maio, o verdadeiro espírito junino não mora na estampa , mora na intenção. Mora no afeto, no gesto, no forró, na fogueira acesa e no cheiro de milho queimado na palha.

O problema é que, em nome de um "figurino tradicional", construímos um estereótipo visual que esvazia a potência criativa e simbólica da festa. Todos os anos, sou obrigada a usar o mesmo tipo de roupa, como se a minha presença na celebração dependesse da padronização do tecido que visto. E mais: como se eu, sem o quadriculado, não fizesse parte da festa. Isso, além de desgastante, é raso.

Sim, o tecido xadrez tem uma origem histórica. Veio da cultura celta e foi amplamente usado pelos escoceses e irlandeses antes de ser disseminado pela Europa e, posteriormente, trazido para o Brasil , onde passou a ser associado, com o tempo, ao universo rural, ao sertanejo, ao trabalhador do campo. Em terras brasileiras, o xadrez chegou com os colonizadores, e nas festas de São João acabou se tornando figurino quase oficial, principalmente a partir das representações do homem do campo nas danças de quadrilha, nos colégios e nas festas populares.

Mas aqui vem o ponto crucial: isso é uma representação, não uma obrigação. Quando dizemos que não existe São João sem quadriculado, estamos apagando todo o universo simbólico que existe por trás dessa festa, reduzindo-a a um padrão estético que não nos representa mais completamente , e, pior, reproduzindo sem crítica um ideal folclórico estagnado.

Festa viva, estética viva

Eu moro numa cidade onde o São João dura mais de 30 dias. É praticamente um ciclo junino inteiro, cheio de shows, quadrilhas, feiras, comidas típicas e manifestações culturais. Numa cidade como essa, não faz sentido repetir o mesmo figurino em todas as noites de festa. Ao contrário: esse é o cenário perfeito para que cada um de nós possa experimentar liberdade criativa, autenticidade e gosto pessoal.

O São João, como todas as festas populares, é uma festa viva , e uma festa viva precisa se transformar. É um erro pensar que tradição e inovação são opostos. A verdadeira tradição é a que pulsa junto com o tempo, que se adapta, que encontra novas formas de dizer o que sentimos. E a moda é linguagem. Não há sentido em impor uma regra visual que diga como devemos celebrar algo que é, antes de tudo, nosso.

Vestir-se com originalidade no São João não é desrespeitar a tradição. É participar dela de forma mais autêntica. É entender que, sim, ainda há espaço para o xadrez e as roupinhas de matuto, mas também há espaço para outros códigos estéticos que comuniquem quem somos hoje. Cores, rendas, bordados, vestidos florais, botas estilizadas, peças com regionalismos variados... tudo isso também é São João. E quando a festa é feita de verdade, ninguém precisa pedir permissão para ser criativo.

Estereótipos e apagamentos

Dizer que só existe São João com quadriculado é também perpetuar um estereótipo do "caipira" que empobrece o imaginário rural. Não é raro ver fantasias que zombam da figura do sertanejo, com dentes pintados de preto, roupas rasgadas e chapéus exagerados. Isso, infelizmente, revela o quanto muitas pessoas ainda veem o homem do campo com um olhar caricato, como se ele fosse atrasado ou motivo de piada.

Ora, se a roupa quadriculada é parte de um legado europeu que passou a representar o sertanejo, então precisamos lembrar que o sertanejo é plural. Ele é o vaqueiro do Nordeste, a rendeira de Alagoas, o agricultor do interior de São Paulo, a mulher que dança quadrilha no sertão de Sergipe. Cada um com seus saberes, suas vestimentas, suas cores. Reduzir tudo isso a um uniforme xadrez é apagar a diversidade e a riqueza simbólica dessas figuras.

Pior ainda: é xenofóbico usar a tradição escocesa como moldura para exigir que todos se vistam igual. A cultura nordestina, riquíssima em detalhes, bordados, texturas e cores, não precisa de um padrão imposto de fora. A identidade junina é local, é comunitária, é visceral. Não precisa de aprovação estética para existir.

Xadrez é válido, mas não é regra

Claro que o xadrez tem seu espaço. Ele virou parte do imaginário coletivo, está nas fotos antigas, nas danças infantis, nos trajes das quadrilhas juninas e nas lembranças de infância de muita gente. Ele pode e deve ser usado , por gosto, por memória, por estilo. O problema é a imposição. A patrulha do "não tá caracterizado" porque não tá com camisa xadrez é chata, elitista e reducionista.

Mais bonito do que seguir um figurino obrigatório é resgatar o sentido original da festa: celebrar a colheita, agradecer pelas chuvas, honrar a cultura popular, dançar forró agarradinho, acender fogueira e fortalecer o sentimento de comunidade. Se é de xadrez, ótimo. Mas se é de crochê colorido, tule, linho, cetim, bordado, couro ou até calça jeans com blusa branca, é festa do mesmo jeito. E, talvez, até mais verdadeira.

Porque São João não é só sobre como a gente se veste. É sobre como a gente se expressa. É sobre a liberdade de criar, dançar, ser quem se é , sem a necessidade de colocar estampa nenhuma para isso. Quem ama o São João de verdade, sabe: ele não cabe numa estampa. Ele cabe no coração.

Trago Fatos, Marília Ms. 

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