História do Rímel
Pouca gente sabe, mas dentro de cada tubinho de rímel que se vende hoje nas farmácias, nas boutiques de luxo ou nas prateleiras do mercado, não existe só cosmético. Existe história. Existe amor. Existe Paris. E, claro, existe uma dose generosa de capitalismo disfarçado de beleza.
A história começa na Paris do final do século XIX. A famosa Cidade da Luz, onde as ruas eram cenário de boemia, arte, desigualdade e revoluções culturais silenciosas. Entre lampiões, cafés, carruagens e mulheres que circulavam entre os limites apertados da moral da época, Eugène Rimmel caminhava , e, sem saber, caminhava rumo à eternidade.
Eugène não era qualquer homem. Filho de um imigrante francês, cresceu cercado de frascos, essências, vidros e experimentações químicas. Seu pai, visionário, fundou uma perfumaria que seria muito mais do que uma loja: seria um laboratório de sensações. A Rose of Rimmel foi onde Eugène aprendeu que a beleza é química, alquimia e, acima de tudo, narrativa.
O Olhar que Muda Tudo
Foi numa dessas noites parisienses, onde a neblina se mistura com o cheiro de pão, vinho e carvão, que Eugène cruzou o olhar com uma mulher anônima. Uma mulher que não disse uma única palavra. Não precisou. Seus olhos falaram tudo. E falavam muito mais do que ele, homem, poderia compreender.
Os cílios dela, escurecidos com uma mistura rudimentar de carvão e gordura , uma prática comum, mas precária , pareciam ter sido moldados para capturar a própria luz dos lampiões. Naquele instante, Eugène não viu só uma mulher. Ele viu uma ideia. Uma obsessão. Um desejo embalado em estética.
Mas aqui mora o detalhe que a indústria não te conta: não era só fascínio pela beleza. Era o entendimento, talvez inconsciente, de que o olhar , especialmente o olhar feminino , era uma ferramenta poderosa. Uma linguagem que escapava da censura, da opressão, do silêncio que as mulheres eram obrigadas a carregar naqueles tempos.
O Nascimento do Desejo Empacotado
De volta ao laboratório, Eugène fez o que a modernidade esperava dele: transformou sentimento em produto. Passou meses experimentando carvão, ceras, óleos e perfumes, até conseguir aquilo que ninguém havia feito de forma comercial antes: criar o primeiro cosmético moderno para cílios.
Não era só um cosmético. Era uma promessa. Uma embalagem de poder disfarçada de vaidade. Era o nascimento do rímel — ou, mais precisamente, do Rimmel. Seu próprio sobrenome virou sinônimo mundial de algo que, até então, não tinha nome.
E aqui vem a pergunta desconfortável: quantas coisas que hoje chamamos de beleza foram, na verdade, construídas a partir de uma visão masculina sobre o que deveria ser feminino?
O Olhar Feminino Nunca Mais Foi o Mesmo
O produto explodiu. Mulheres que, até então, tinham pouquíssimos meios de expressão pessoal, passaram a usar o olhar como arma, como convite, como escudo, como poesia.
Porque o olhar não precisa pedir licença. Não precisa falar. Não precisa se curvar.
Mas, por outro lado, a indústria percebeu rápido que, se o olhar podia ser livre, também podia ser domesticado, formatado, vendido e explorado. E, assim, o rímel deixou de ser só um gesto poético de Eugène apaixonado e virou uma das maiores máquinas de faturamento da indústria da beleza no mundo.
Rimmel, Mas Também Controle
Eugène talvez não soubesse, mas ao criar o rímel, também ajudava a pavimentar um dos pilares daquilo que hoje chamamos de padrão estético.
Afinal, se o olhar feminino deveria ser destacado, qual olhar seria esse? Longo? Curvado? Preto? Volumoso? Natural, mas nem tanto? Sexy, mas não vulgar? Alegre, mas não espalhafatoso? Delicado, mas não invisível?
O que começou como uma reverência ao mistério do olhar virou uma prisão estética que, até hoje, se disfarça de empoderamento. Porque, no fundo, toda indústria que lucra com insegurança precisa que você acredite que seu olhar natural não basta.
De Paris Para o Mundo
Nos países latinos, até hoje, rímel não é só cosmético. É sinônimo. É linguagem. Na Espanha, na Itália, em Portugal, a pergunta não é se você trouxe a máscara de cílios. A pergunta é: “Você trouxe seu Rimmel?” , como quem pergunta: “Você trouxe sua arma secreta? Seu filtro da alma? Sua assinatura no mundo?”
Mas talvez o que ninguém perceba é que essa pergunta, que carrega traços de sedução, também carrega rastros de um sistema inteiro. Um sistema que transformou um instante poético em mercado. Um encontro casual em uma linha de produção infinita de produtos, promessas e padrões.
O Olhar Continua Sendo Revolução
E, no entanto, o paradoxo persiste. Porque, mesmo sequestrado pela lógica do consumo, o olhar continua sendo aquilo que ninguém nunca conseguiu controlar por completo. É no olhar que ainda mora a subversão. O desejo. A recusa. O encanto. O aviso. O sim e o não.
E talvez, no fundo, Eugène tenha entendido isso. Talvez, ao cruzar aquele olhar na noite parisiense, ele tenha percebido que não existe poder maior do que aquilo que se comunica sem palavras. E, ironicamente, sem nunca mais ter visto aquela mulher, ela ficou eterna. Não no nome dela, que nunca saberemos. Mas no nome dele, que carregamos até hoje, dentro de cada tubinho de rímel.
Trago fatos, Marília Ms.
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