"Você sabe com quem está falando?": o autoritarismo cotidiano de um país que ainda não se libertou da hierarquia social
Pode até ser que cenas assim se repitam mundo afora, em algum grau. Mas aqui no Brasil, a gente é professor. Professor da arrogância cotidiana, do autoritarismo camuflado de formalidade, da necessidade de pisar no outro para se sentir alguém. Um povo que aprendeu , e ensina com maestria , que o respeito, na prática, é menos sobre dignidade humana e mais sobre status. Aqui, até para respirar em paz, é preciso "ter nome". E se você não tem nome, CPF importante, sobrenome influente ou cartão de crédito com pontuação estelar, sente-se. Espere. Calado.
Essa mania de apontar o dedo para o outro e, na cara dura, soltar um “você sabe com quem está falando?” não é só sintoma de vaidade. É uma doença social enraizada. Um reflexo amargo de um país fundado na desigualdade, onde a tentativa de “ser alguém na vida” frequentemente vem carregada de uma sede desumana de diminuir os outros.
Basta visitar qualquer porta giratória de banco para ver esse espetáculo em tempo real. O segurança cumpre o protocolo , e o sujeito engravatado, irritado com o atraso de cinco segundos, já muda o tom. “Você acha que eu sou quem? Um ladrão?” Não. Mas acha que o outro é o quê? Um servo? Um capacho? Um obstáculo humano entre ele e sua "importância"?
A fila do avião e a pedagogia da desigualdade
Outro exemplo banal, mas revelador, está nas filas de embarque. Ali, a diferença de classe é performada em voz alta e com tapete vermelho. Cliente Master Plus First Elite entra primeiro. O resto assiste, constrangido. Quem já se viu na “última chamada” sabe a sensação de invisibilidade que é ser parte do grupo que embarca por último. É quase uma pedagogia da desigualdade: você aprende seu lugar, entende seu número de prioridade, e baixa a cabeça.
A pergunta que fica é: o que nos incomoda nisso? A injustiça da divisão ou a frustração de não estar no topo dela?
O ponto central não é só a desigualdade em si — é o prazer que muitos têm em performar a superioridade. É sobre como alguns só conseguem se sentir grandes quando conseguem rebaixar o outro. Como se o valor pessoal dependesse da humilhação alheia. O "status" é o palco, mas a humilhação do outro é o espetáculo.
Hierarquias invisíveis (mas sentidas)
Essa lógica se repete em empresas, escolas, famílias. O chefe grita, humilha, impõe medo. O funcionário engole o choro, porque sabe que não pode perder o emprego. "Cala a boca, você não é ninguém", dizem em outras palavras. Quem tem o cargo, tem a voz. Quem tem a grana, tem a razão. E quem é pobre, preto, periférico, que espere seu lugar no canto, em silêncio. Aqui, infelizmente, ainda funciona assim.
E é nesse cenário que o autoritarismo disfarçado se normaliza. Ele aparece no tom de voz, na forma como se olha, na naturalização da hierarquia. Um país que deveria ser plural, miscigenado e solidário, continua sendo orientado por uma lógica colonial: a do dono da casa grande contra o da senzala, a do senhor contra o serviçal, a do cidadão de bem contra o "vagabundo".
A dor da igualdade
E aqui chegamos à questão mais espinhosa: por que a igualdade incomoda tanto? Porque ela nos obriga a abrir mão de privilégios silenciosos. Ela nos pede para sentar ao lado de quem sempre esteve abaixo e olhar de igual para igual. E isso, para muita gente, é insuportável. Porque exige rever o próprio senso de superioridade, aquele conforto de ser "mais" só porque o outro é "menos".
É mais fácil gritar “você sabe com quem está falando?” do que encarar que, no fundo, ninguém deveria ser mais que ninguém. Que respeito não se mede por carteira, cor ou cargo. Que autoridade não deveria servir para calar, mas para ouvir. E que grandeza de verdade se prova na forma como tratamos os pequenos.
Um país que se veste de democracia, mas vive o autoritarismo cotidiano
Enquanto não desarmarmos essas estruturas mentais, seguimos professores , mas do pior tipo. Ensinamos a manter o silêncio diante da injustiça. Ensinamos que humildade é submissão. Ensinamos que quem tem dinheiro manda, e quem trabalha cala. Que preto tem que “agradecer” por estar ali. Que pobre é suspeito até que prove o contrário.
Não basta mudar leis. É preciso mudar a mentalidade. Porque o autoritarismo à brasileira não precisa de farda nem de decreto: ele vive na fila, no balcão, na sala de embarque, na porta do banco e no “bom dia” seco dado ao garçom.
Se o Brasil quiser mesmo ser um país justo, precisa antes aprender a lição que ainda resiste em aprender: ninguém é grande humilhando o outro. A verdadeira autoridade se mede pela capacidade de tratar qualquer pessoa , qualquer uma , com dignidade.
Você quer mesmo ser grande? Então comece reconhecendo o humano no outro. E guarde a pergunta “você sabe com quem está falando?” para si mesmo. Mas de forma invertida. Porque talvez a única resposta digna a essa pergunta seja: “estou falando com alguém igual a mim”.
Trago Fatos , Marília Ms.
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