Turismo, colonialismo e o remendo da ilha em Lilo & Stitch



É curioso como um dos filmes mais subversivos e politicamente complexos da Disney passou, por muito tempo, despercebido sob o disfarce de uma história infantil fofa e azul. Lilo & Stitch não é só sobre uma menina havaiana que adota um alienígena. É um retrato crítico da realidade econômica, social e racial de uma ilha dominada pelo turismo, onde o paraíso serve de vitrine para os olhos dos estrangeiros, mas continua sendo um inferno de exclusão e pobreza para os seus nativos.

A primeira coisa que salta aos olhos , quando observamos com o distanciamento necessário , é que todos os empregos gerados na ilha giram em torno do turismo. Em outras palavras: a ilha sobrevive da servidão turística. Uma servidão que disfarça seus grilhões em colares de flores, luaus de mentira, e sorrisos forçados em frente às câmeras de visitantes que chegam, gastam e partem. Como resultado, a população nativa precisa se moldar a esse modo de vida: um eterno teatro sazonal. Durante dois ou três meses no ano, as ruas se enchem de gente branca, geralmente rica, que consome cultura havaiana como se estivesse em um grande parque temático exótico. No restante do tempo, a ilha esvazia e revela sua real face: um território abandonado, sem oportunidades e marcado pela escassez.

Nani, a irmã mais velha de Lilo, é o exemplo vivo dessa precarização. Ela é jovem, órfã, moradora nativa tentando criar a irmã sozinha após a morte dos pais , e ainda assim, não consegue um emprego. O único que lhe é concedido é em um "luau" , que, como ela mesma admite, é um luau falso, feito para agradar turistas. Um teatro cultural vazio, que distorce as raízes locais para caber no imaginário estrangeiro de paraíso tropical. Quando ela é demitida, não é só um corte de renda. É a evidência de que a cultura local só tem valor enquanto pode ser performada para o lucro alheio.

Já Lilo, a protagonista, carrega em si o retrato da exclusão. Mais escura do que suas colegas , e casualmente a única a sofrer bullying no grupo de meninas da sua idade , ela representa a criança verdadeiramente nativa, aquela que não se encaixa no molde havaiano vendido aos turistas. Enquanto as outras garotas consomem e reproduzem estéticas estrangeiras, Lilo caminha na contramão: ela coleciona fotos de turistas. Inverte a lógica. Ao invés de ser o “objeto exótico” observado, ela torna os turistas os objetos da sua lente. Obesos, espalhafatosos, brancos , ela os registra como “os diferentes”. É uma forma sutil de resistência simbólica: denunciar o olhar colonial invertendo-o.

A crítica se aprofunda ainda mais numa cena deletada do filme original: Lilo é constantemente abordada por turistas americanos que perguntam se ela fala inglês e pedem direções para praias. Cansada da constante invasão, da transformação de sua terra num cenário para gente de fora, ela finge um tsunami para expulsar os turistas. A Disney cortou essa parte. Mas manteve o espírito da crítica: no lugar, o Stitch começa a dançar , e, como Lilo, também é assediado por turistas com câmeras. Perde a paciência e destrói tudo. O simbolismo é o mesmo. A cultura local, exposta como atração, reage.

Mas a opressão turística não é a única engrenagem do sistema que sufoca essa ilha. Temos também Cobra Bubbles, um agente da assistência social, ex-agente da CIA, um americano incumbido de decidir se Nani tem capacidade de cuidar da irmã. Ele é a personificação do Estado americano intervindo na intimidade das famílias nativas. Seu papel não é o de oferecer suporte, mas de ameaçar com a separação. O paradoxo é cruel: o sistema exige que Nani tenha estabilidade e emprego, mas é o mesmo sistema que a impede de conseguir qualquer uma dessas coisas. A estrutura que deveria acolher é a que mais contribui para o desmantelamento das famílias.

E é aí que entra Stitch. Um alienígena projetado para o caos, para destruir. Mas que cai na Terra , mais especificamente no Havaí  e encontra algo que ele nunca esperou: acolhimento. Stitch é o estrangeiro que chega não para explorar, mas para se reconstruir junto à ilha quebrada. O nome Lilo, em havaiano, significa “perdido” ou “quebrado”. Stitch, em inglês, é “costura”, “remendo”. Uma menina quebrada e um alienígena remendado criam uma família que, à sua maneira, desafia todos os padrões impostos. E se tornam inteiros justamente porque se aceitam na sua imperfeição.

Essa construção simbólica carrega um recado poderoso: é mais fácil um alien cair do céu e curar uma família nativa, do que o próprio Estado prestar assistência a ela. É um tapa na cara do sistema de assistência social, da imigração americana e da própria Disney, que, apesar de ter produzido o filme, atua ativamente na gentrificação de locais turísticos como o Havaí.

Além disso, o filme subverte um dos valores mais enraizados na cultura americana: a concepção tradicional de família. A família de Lilo e Nani não é a nuclear, heteronormativa, de classe média e bem estruturada. É composta por duas irmãs órfãs e um alienígena. E ainda assim, é uma família. Porque “Ohana significa família. E família significa nunca abandonar ou esquecer.” O filme deixa claro: o que constitui uma família é o afeto, o cuidado, o apoio mútuo , não o sangue, a aparência ou os papéis sociais tradicionais.

E talvez esse seja o grande trunfo de Lilo & Stitch. Uma crítica social profunda embalada em alienígenas fofos e piadas leves. Um espelho do Havaí, colonizado e explorado, que se mantém de pé pela força de seus nativos e seus laços afetivos. Uma denúncia contra o turismo predatório, o racismo, a assistência social que não assiste, e o imperialismo que transforma tudo em mercadoria , até a dor dos outros.

No fim das contas, Lilo & Stitch é sobre resistência. Sobre um povo que sobrevive no intervalo entre temporadas turísticas. Sobre uma menina que fotografa o mundo com o olhar de quem sempre foi olhada como “o outro”. Sobre uma jovem mulher que tenta ser adulta num sistema que só a quer como atração. E sobre um alienígena que ensina: às vezes, quem foi criado pra destruir, pode ser o único capaz de consertar , desde que encontre amor, acolhimento e uma família que o aceite, mesmo que ele tenha chegado do céu, ou do inferno.

Porque no fundo, ninguém que tenha sido amado verdadeiramente volta a ser o mesmo depois. Nem mesmo um experimento genético rebelde. Nem mesmo uma ilha devastada pelo turismo.

Trago Fatos, Marília Ms.

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