“Terras dos Santos”: Como a Igreja Católica lucra com terrenos que você nem sabia que eram dela




Se você mora em uma cidade que leva o nome de um santo , São Paulo, Santo André, São João del-Rei, Santa Maria, e por aí vai , é bem possível que você esteja pisando, vivendo, construindo e pagando IPTU sobre um terreno que, na verdade, não pertence a você, nem à prefeitura. Mas à Igreja Católica. E mais: talvez você só vá descobrir isso quando tentar vender esse imóvel e se deparar com uma taxa que ninguém te contou que existia , o laudêmio. E aí, meu amigo, o santo vai cobrar a parte dele.

Essa prática soa como uma relíquia colonial. E é exatamente isso. O laudêmio é uma taxa criada ainda no Brasil Colônia, quando a Coroa portuguesa concedia o uso de terras a terceiros, mas mantinha a posse de fato. A lógica era: você pode usar, construir, cultivar e até vender... desde que pague um valor ao verdadeiro dono do terreno. Esse dono, na época, era o rei. Com o tempo, esses direitos foram sendo doados ou herdados. E entre os grandes herdeiros desse passado, está a Igreja Católica.

Hoje, em pleno 2025, enquanto o Brasil discute reforma agrária, moradia digna, regularização fundiária e justiça social, ainda há cidades inteiras assentadas sobre terras que pertencem , juridicamente , à Igreja. Um dos exemplos mais emblemáticos é o de Ribeirão Preto, em São Paulo. Lá, no coração do centro urbano, entre prédios comerciais e casas antigas, dezenas de quarteirões são terrenos da Igreja Católica. Os imóveis pertencem a particulares. Mas o chão , o chão onde tudo está erguido , tem escritura e carimbo do Vaticano, por assim dizer.

A cada venda de imóvel, a Igreja recebe 2,5% do valor. Isso mesmo. Um imóvel de 2,4 milhões de reais rende 60 mil para a instituição religiosa, que nada fez por ele além de manter o título de proprietária da terra. E sempre que esse imóvel for negociado novamente, o ciclo se repete. É uma renda perpétua, garantida por um sistema legal que não foi reformulado desde os tempos do Império.

E de onde vieram essas terras? A origem remonta à estratégia dos grandes fazendeiros coloniais, que, para atrair trabalhadores, doavam pedaços de suas vastas propriedades à Igreja com o objetivo de erguer capelas dedicadas a santos populares. As capelas viravam vilas. As vilas, cidades. Mas a Igreja nunca abriu mão do chão. O resultado? Um Brasil moderno com raízes medievais.

Pior: não sabemos nem ao certo onde essas terras estão. Os registros são analógicos, escondidos em cartórios de pequenas cidades, em arquivos eclesiásticos, em anotações esparsas. Quando confrontada, a própria CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) não soube ou não quis informar quantas terras a Igreja tem no país, quanto arrecada com laudêmios ou como usa esses recursos. O silêncio é mais eloquente do que qualquer explicação.

E não é só a Igreja. A família imperial brasileira , sim, ela ainda existe , também é beneficiária do mesmo tipo de privilégio. Em Petrópolis, no Rio de Janeiro, descendentes da monarquia portuguesa ainda recebem laudêmios pelas vendas de imóveis em áreas que pertenciam à Coroa. Uma elite hereditária recebendo dividendos de um país que se diz republicano há mais de 130 anos.

Enquanto isso, milhares de brasileiros vivem em favelas, ocupações, loteamentos irregulares. Luta-se por títulos de posse, por direito à terra, por acesso à moradia. Mas em regiões centrais de cidades brasileiras, o que impera é o feudalismo disfarçado de tradição religiosa.

O que esse sistema perpetua é o que há de mais arcaico: a ideia de que terra é poder absoluto. E que esse poder pode ser exercido sem diálogo, sem transparência, sem prestação de contas. Não é sobre fé. É sobre política fundiária. É sobre estrutura. É sobre um Brasil que ainda está preso ao modelo mental dos sesmeiros e senhores de engenho, que faz de conta que é moderno enquanto paga tributo a santos e príncipes.

A permanência do laudêmio é um sintoma de um país que se nega a discutir quem tem o direito à terra. Um país que tolera que o uso e a posse do solo urbano sejam moldados por heranças coloniais e estruturas de poder eclesiástico. Um país onde os donos da terra muitas vezes não vivem nela, não a conhecem, mas lucram silenciosamente com cada movimentação imobiliária.

Se o Estado brasileiro tem a coragem de discutir a taxação de grandes fortunas, deveria também ter a coragem de discutir a propriedade da terra urbana. E perguntar, sem medo: até quando vamos naturalizar que a Igreja , ou qualquer entidade ,continue lucrando com o suor de quem constrói, investe, vive e transforma a cidade?

A terra ainda é santa, sim. Mas o lucro está bem longe do altar.

Trago Fatos, Marília Ms.

Comentários

Matérias + vistas