Santa Catarina, o mito da pobreza zero e a história que ninguém conta: por que a reforma agrária que funciona no Sul é rejeitada no resto do país?
É comum vermos nas redes sociais, em manchetes e nos comentários cheios de certezas, a exaltação de Santa Catarina como um “exemplo” a ser seguido. Um estado com baixos índices de pobreza, altos indicadores de desenvolvimento humano, cidades organizadas e com qualidade de vida. Mas, ao contrário do que se vende por aí, isso não é fruto de algum tipo de “excelência cultural inata” do povo sulista, nem de um suposto afastamento da política de esquerda , até porque isso é historicamente falso. O que realmente moldou Santa Catarina foi um conjunto de políticas públicas deliberadas, aplicadas ao longo do tempo, que se parecem, ironicamente, com aquilo que muita gente hoje chama de “esquerdismo”.
Vamos começar do início.
Quando houve a grande onda de imigração europeia ao Brasil, especialmente de italianos e alemães, o governo brasileiro , preocupado em “branquear” a população e “civilizar” o interior , ofereceu incentivos generosos para que esses imigrantes se fixassem no Sul do país. Não estamos falando de políticas espontâneas e igualitárias. Foram políticas racistas, planejadas, que promoveram a ocupação de terras por estrangeiros brancos em detrimento das populações negras e indígenas.
Esses colonos receberam o que hoje seria chamado de reforma agrária: concessão de terras públicas, apoio financeiro, crédito facilitado e condições mínimas de infraestrutura. Ou seja, receberam terra, casa e meio de produção. Foi dessa política que surgiu a figura do colono catarinense, aquele que planta para si, vende o excedente, vive em comunidade e tem sua dignidade garantida pela possibilidade de trabalhar e viver da terra.
E esse modelo, que hoje é exaltado como sinônimo de produtividade, integração social e sucesso econômico, é exatamente o que se recusa a aplicar nas regiões Norte e Nordeste do país. Por quê?
Porque em outras partes do Brasil, principalmente nas mais pobres, a história foi muito diferente. Lá, a concentração de terra e poder foi brutal. O sistema de latifúndio e escravidão moldou as estruturas sociais, políticas e econômicas desses territórios. A figura do coronel ,dono da terra, da política local, da força policial e, muitas vezes, até da religião , impedia qualquer avanço de justiça social ou redistribuição de riqueza. Isso se perpetuou por séculos, passando pela República Velha, pelo Estado Novo, pela ditadura militar e chegando, ainda vivo, nas estruturas políticas atuais.
A pobreza, portanto, não é uma maldição cultural. É um projeto de país.
Ela é consequência direta da concentração de terras, de riquezas, de oportunidades e de direitos. Onde há monopólio do poder, haverá miséria. Onde há partilha, ainda que parcial, a dignidade floresce.
A contradição mora justamente aqui: as mesmas pessoas que exaltam Santa Catarina como exemplo de sucesso são, muitas vezes, as que mais se opõem a políticas de redistribuição de terras no restante do Brasil. Acham um absurdo falar em reforma agrária no Norte ou Nordeste, mas aplaudem de pé a cultura agrícola catarinense , construída exatamente sobre a lógica da reforma agrária europeia.
Além disso, dizer que o Sul “nunca foi governado pela esquerda” é historicamente incorreto. Municípios e estados da região já foram administrados por partidos de esquerda e centro-esquerda várias vezes. Mais importante que isso, é preciso entender que nenhuma região se constrói apenas por quem governa hoje, mas por decisões políticas cumulativas, históricas, que sedimentam privilégios ou exclusões. Santa Catarina não é rica por um acaso divino nem por mérito isolado de seu povo , é rica porque políticas deliberadas foram aplicadas ali com objetivos muito específicos.
Também é importante entender que a pequena produção familiar catarinense obriga a comunidade a interagir. Quando cada um produz um pedaço do todo, surge a necessidade de escoar, de cooperar, de articular. Isso fortalece laços comunitários, gera trabalho, renda e sentido coletivo. A economia gira de forma descentralizada. Não há uma única grande mão controlando o sistema , o que é exatamente o oposto do coronelismo nordestino ou do agronegócio monocultor em outros estados.
A pergunta que fica é: por que o que deu certo no Sul, não é replicado no restante do país?
Por que a ideia de dar terra, casa e dignidade para o trabalhador é chamada de “comunismo” em alguns lugares e de “tradição familiar” em outros?
Santa Catarina é sim um exemplo , não por estar “imune” à esquerda, mas por ter vivido na prática, e por décadas, o que muitos países europeus também aplicaram: a descentralização da terra, o apoio ao pequeno produtor e o investimento em infraestrutura de base. É uma reforma agrária disfarçada de colônia.
Enquanto não reconhecermos que a desigualdade no Brasil tem cor, origem e herança escravocrata, seguiremos repetindo chavões vazios. O Sul só é o que é porque teve acesso ao que o restante do país foi impedido de ter: políticas públicas de verdade, que priorizam o ser humano e não a concentração de riqueza.
Exaltar Santa Catarina enquanto se nega os instrumentos que fizeram sua história é, no mínimo, hipocrisia. E, no máximo, um projeto consciente de perpetuação da desigualdade.
Trago Fatos , Marília Ms .
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