Quando se corta verba de um rio, corta-se a vida: Ação popular tenta reverter bloqueio de R$ 15 milhões destinados à preservação do São Francisco
O que está em jogo não é apenas uma cifra contábil em uma planilha de orçamento. O corte de R$ 15 milhões do orçamento do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) é uma ferida aberta no corpo de um dos rios mais simbólicos e essenciais do Brasil. Trata-se de um ataque silencioso, mas brutal, contra a natureza, a história, a dignidade dos povos ribeirinhos e o futuro de uma das maiores reservas hídricas do país. A decisão de bloquear esses recursos coloca em xeque não apenas projetos socioambientais em andamento, mas a própria lógica de um Estado que deveria proteger o que é essencial: a água, a terra e a vida.
A ação popular ajuizada na Justiça Federal de Propriá, liderada pelo advogado e ativista cultural Franklin Ribeiro, é mais que um gesto jurídico , é um grito de resistência. É uma tentativa de lembrar ao poder público que o Rio São Francisco não é um número negociável ou um item dispensável de orçamento. É um organismo vivo que alimenta culturas, histórias, ecossistemas, comunidades inteiras , e que vem sendo, há décadas, mutilado por descasos institucionais, barragens mal planejadas, poluição, desmatamento e, agora, pela tesoura da irresponsabilidade administrativa.
O corte, que reduz de R$ 85 milhões para R$ 70 milhões o orçamento aprovado para 2025, ameaça diretamente ações estruturantes como controle de erosão, recomposição da vegetação nativa, saneamento básico e recuperação de nascentes. Essas não são pautas secundárias. São a base da sobrevivência de famílias inteiras que vivem da pesca, da agricultura de subsistência, da água do rio. São estratégias de contenção frente à desertificação iminente e à perda de biodiversidade. São, sobretudo, políticas públicas que traduzem em ações concretas o que está assegurado na Constituição: o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Mas é justamente aí que se revela o abismo entre a teoria e a prática. A legislação federal é clara: os recursos oriundos da cobrança pelo uso da água têm destinação específica e não podem ser contingenciados. Ignorar essa regra é mais do que um erro técnico, é um crime ético. É desviar do curso natural do direito. É negligenciar o fato de que esses recursos pertencem, antes de tudo, à coletividade.
Pessoas como Edjan Alves, liderança comunitária no povoado Betume (Neópolis-SE), sabem o que está em risco. A iniciativa de criação de peixes, que beneficiava 26 famílias e agora se mantém precariamente com apenas nove, é um retrato do abandono. Josinaldo Ribeiro, do povo Xocó, denuncia que os programas financiados pelo comitê não são apenas ambientais: são também culturais, educacionais e espirituais. São formas de garantir que os povos originários, os primeiros guardiões desse território, tenham condições mínimas de seguir existindo com dignidade.
É simbólico que essa ação tenha partido de um advogado que também é presidente da Academia Propriaense de Letras, Ciências, Artes e Desportos. A defesa do São Francisco não é só técnica, é cultural, literária, simbólica. É a defesa de um rio que carrega mitologias, músicas, poemas, crenças, identidades. É o Velho Chico, como o chamam os filhos e filhas da margem. Um rio que é avô, que é casa, que é memória. Um rio que sobreviveu à Transposição, à exploração desenfreada e às promessas não cumpridas, mas que agora corre o risco de definhar lentamente, sufocado por cortes frios e desumanos.
Reverter esse corte é mais do que uma pauta ambientalista. É uma necessidade civilizatória. É afirmar que a gestão dos bens comuns não pode estar à mercê de interesses obscuros ou de tecnocracias insensíveis. É exigir que o Estado seja zelador, não algoz, daquilo que é patrimônio coletivo.
A ação popular quer mais que um parecer favorável. Quer adesão. Quer mobilização. Quer que a população entenda que o poder está em suas mãos, e que defender o São Francisco é defender a si mesmo. Se o povo se calar, o rio também silencia. E quando um rio morre, não é só a água que desaparece , é a vida que evapora, gota a gota, até não sobrar nada além de um leito seco de arrependimento.
Portanto, este não é um apelo romântico. É um chamado urgente. Ou defendemos o Velho Chico agora, ou herdaremos um deserto. E contra esse futuro, não haverá ação judicial que nos salve.
Trago Fatos, Marília Ms.
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