Quando o critério é ideologia: O caso Moana Valadares, a denúncia de Carlito Neto e a perigosa normalização da política do “só os meus”
Na manhã da última segunda-feira, 26, o historiador e comunicador Carlito Neto reacendeu o debate sobre os limites entre o público e o privado na política sergipana. Durante uma entrevista à rádio Fan FM, Carlito revelou que pretende formalizar uma denúncia contra a vereadora de Aracaju, Moana Valadares, por condicionar a contratação de uma estagiária de comunicação à afinidade ideológica com o espectro da direita. A exigência, publicada nas redes sociais da vereadora, foi justificada por ela com base no caráter “político” do cargo e na necessidade de alinhamento com os valores do gabinete.
O caso, à primeira vista, pode parecer trivial ,mais um episódio de troca de farpas entre atores políticos locais. Mas, na prática, escancara um problema muito mais grave: a normalização da ideologização das estruturas públicas e o desmonte silencioso dos princípios de impessoalidade e isonomia que deveriam nortear a administração pública, ainda que se trate de cargos comissionados ou de estágio.
Estágio não é palanque ideológico
Moana Valadares defende sua posição afirmando que tem “completa discricionariedade para escolher quem vai trabalhar com ela”, uma vez que se trata de uma equipe política, e não de um concurso público. No entanto, esse argumento esbarra em um princípio constitucional fundamental: o da impessoalidade. Ainda que a vaga seja de estágio e ainda que envolva funções de comunicação , notoriamente sensíveis ao discurso político , não é admissível, dentro de um Estado Democrático de Direito, que o viés ideológico do candidato seja um filtro formal no processo seletivo.
Estágio é uma etapa de formação profissional, vinculada a instituições de ensino, com a finalidade educativa prevista em lei. É inadmissível que seja transformado em uma peneira ideológica. Quando um agente público , ainda que eleito, usa sua função para promover uma “cláusula ideológica” como critério de seleção, está criando um ambiente hostil à pluralidade de ideias e ferindo o princípio do acesso equitativo às oportunidades públicas.
E se fosse ao contrário?
É preciso fazer o exercício de inverter os polos: e se um vereador de esquerda anunciasse publicamente que só aceitaria estagiários com perfil progressista, que fossem contra o bolsonarismo, por exemplo? Qual seria a reação? Quantos perfis de direita gritariam por “discriminação”, “doutrinação” e “censura ideológica”? O debate precisa sair da bolha da conveniência e entrar no campo do equilíbrio.
O problema não está no espectro político escolhido , direita, esquerda ou centro , mas na institucionalização da intolerância à divergência. Transformar gabinetes parlamentares em trincheiras ideológicas onde só os convertidos têm vez é sintoma de um ambiente político adoecido, onde a democracia se torna cada vez mais frágil e a diversidade de pensamento, uma ameaça.
Carlito Neto e o papel da denúncia
Carlito Neto, ao afirmar que irá formalizar a denúncia contra Valadares, não o faz apenas como opositor político — embora ele próprio tenha ciência de que assim será rotulado , mas como alguém que reconhece o risco de se banalizar esse tipo de prática. Ele denuncia por princípio, por entender que o uso da máquina pública para privilegiar aliados ideológicos é, em última instância, uma forma disfarçada de patrimonialismo.
A vereadora, por sua vez, rebate com ironia e deboche, tentando reduzir a denúncia ao “chilique” de alguém em busca de atenção. Mas, ao fazer isso, ignora que o debate não é sobre ela , é sobre a ética no exercício de cargos públicos e sobre os limites que o Estado impõe à vontade pessoal de seus representantes. O gabinete é dela, mas o cargo é público. E isso faz toda a diferença.
A crise da meritocracia seletiva
Moana afirma que o alinhamento ideológico é importante para a comunicação do mandato. Ora, se esse argumento for levado ao extremo, abre-se a porta para que outros critérios subjetivos , religião, cor da pele, orientação sexual, local de nascimento , também sejam considerados legítimos na hora de contratar. O perigo está justamente aí: quando se naturaliza o uso de critérios pessoais como justificativa para a exclusão de cidadãos das oportunidades públicas, estamos alimentando um sistema político que não é baseado em mérito, mas em conveniência.
E, no fundo, esse é um retrato fiel da política brasileira: a ideia de meritocracia só vale quando serve para manter os “nossos” no poder. Quando é para incluir o diferente, o contraditório, o que desafia a zona de conforto ideológica, ela perde valor. Ser de direita, de esquerda ou de centro não pode ser pré-requisito para servir à população , porque a população é diversa, complexa e plural. E o Estado deve espelhar essa diversidade, não reduzi-la.
Conclusão: o gabinete é político, mas o Estado é laico, impessoal e democrático
O caso Moana Valadares é um reflexo de uma cultura política que ainda não compreendeu os fundamentos da democracia. Quando parlamentares tratam seus gabinetes como feudos ideológicos, reforçam a lógica do “nós contra eles” e comprometem o caráter plural da representação popular.
Se Carlito Neto está certo ao denunciar, caberá ao Ministério Público avaliar. Mas, como sociedade, já deveríamos estar refletindo: até quando aceitaremos que cargos públicos sejam ocupados apenas por quem pensa igual? A democracia se constrói com o dissenso, não com o silêncio imposto. E estagiar em um gabinete público não deveria depender da cor do seu voto, mas da sua competência.
Porque no fundo, o que está em jogo aqui não é um estágio. É o respeito pela coisa pública , que pertence a todos, e não apenas aos que pensam como você.
Trago Fatos, Marília Ms.
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