Quando o bom senso é mais raro que o glúten: um caso de descaso, negligência institucional e falta de humanidade em Araucária




O episódio envolvendo a mãe Tairine, sua filha celíaca e a Prefeitura de Araucária escancarou o quanto políticas públicas ainda estão distantes da empatia real e do compromisso com a inclusão verdadeira. O caso, que poderia ser resolvido com escuta ativa e bom senso desde o início, tomou proporções nacionais não por ser um exemplo de boa gestão, mas por expor os limites da rigidez burocrática, da insensibilidade institucional e da inversão de prioridades no trato com uma criança que sofre de uma condição de saúde séria e irreversível.

Vamos aos fatos, que mais parecem um roteiro distópico: Tairine, mãe de uma menina diagnosticada com doença celíaca – que impede qualquer ingestão ou contato com glúten , decide preparar o alimento da filha em casa. Isso, porque a comida oferecida pela escola estava provocando reações físicas, mesmo sendo supostamente “sem glúten”. A explicação? Contaminação cruzada. Uma falha básica, mas gravíssima, que pode acontecer quando alimentos sem glúten são manipulados nos mesmos ambientes ou com os mesmos utensílios usados para alimentos comuns.

Em vez de investigar essa denúncia com a seriedade e a urgência que a saúde de uma criança exige, o poder público resolveu mirar suas energias na mãe que ousou... cozinhar um bolo de cenoura.

A origem do "problema" não foi a ausência de um cardápio equilibrado, nem a denúncia de contaminação cruzada, tampouco o risco de uma criança desenvolver câncer. O problema, segundo algumas mães e, por consequência, a escola, era que a filha de Tairine levava um bolo diferente dos demais e isso "despertava vontade" em outros alunos. O drama da doença cedeu espaço à superficialidade do desejo. A empatia foi substituída pela norma. A vida, pela estética da igualdade artificial.

Diante disso, a resposta inicial da Prefeitura de Araucária foi uma aula de insensibilidade e institucionalização da arrogância. O comunicado público acusava Tairine de distorcer fatos, editar vídeos e preferir “likes” a soluções. Em vez de reconhecer o erro e acolher a situação como uma oportunidade de aprendizado, a prefeitura escolheu o caminho da vitimização institucional: atacou a denúncia em vez de proteger a denunciante, e tentou deslegitimar a dor ao invés de corrigir a política pública falha.

Mas a internet não perdoa quem despreza o sofrimento justo. Diante da repercussão negativa, a prefeitura foi obrigada a recuar, apagar a nota anterior e publicar um novo comunicado: “Uma Nova Escuta, Um Novo Compromisso”. Nele, reconhece falhas, pede desculpas pela postura anterior e promete mais empatia, mais escuta e revisão dos protocolos. Bonito no papel. Mas o fato é que só houve pedido de desculpa quando a pressão popular se tornou insuportável.

A pergunta que precisa ser feita é: e se a internet não tivesse reagido? A filha de Tairine ainda estaria sendo sugerida a comer em uma sala separada? O caso ainda seria tratado como “vontade de bolo” em vez de uma doença autoimune séria?

Essa história fala de algo muito maior do que uma restrição alimentar. Ela expõe o despreparo das instituições em lidar com as especificidades da infância, com a pluralidade das famílias e com o simples exercício da empatia. Enquanto a prefeitura se preocupava com o rigor do cardápio, uma criança corria risco de saúde, e uma mãe era ameaçada judicialmente por tentar proteger sua filha. A acusação de “não seguir o cardápio” virou argumento para culpabilizar quem buscava, desesperadamente, uma saída segura.

Tairine ofereceu soluções, fez exames, apresentou laudos, propôs até custear palestras de conscientização – algo que, aliás, deveria ser obrigação do próprio município. Mas tudo isso foi ignorado. Sua voz só ganhou eco quando viralizou. Isso diz muito sobre a seletividade com que as instituições públicas escutam as famílias: quando uma mãe denuncia que a comida escolar adoece sua filha, é ignorada. Quando outra mãe reclama que o filho ficou com vontade do bolo da colega, a máquina institucional se mobiliza.

No Brasil de 2025, ainda há quem ache mais urgente preservar o padrão alimentar do que proteger a saúde de uma criança com deficiência alimentar grave. Ainda há quem ache razoável exigir que uma criança coma sozinha, longe dos colegas, como punição por sua necessidade especial. Ainda há quem ache que inclusão é oferecer alternativas genéricas, e não adaptar o sistema para abraçar cada criança com suas especificidades.

Essa história deveria ser ensinada em cursos de políticas públicas, pedagogia e nutrição escolar como exemplo do que não fazer. Porque inclusão de verdade não é um cartaz na parede, nem uma nota nas redes sociais. Inclusão começa quando uma criança com uma condição rara não precisa implorar para ser respeitada. Quando uma mãe não é tratada como “inconveniente” por lutar pela saúde da filha. E quando o bolo da lancheira deixa de ser visto como ameaça, para ser reconhecido como o que é: um gesto de amor diante da negligência do Estado.

Tairine não quebrou regras. Ela quebrou o silêncio. E por isso, tornou-se símbolo de uma luta que vai além do glúten: a luta por um país onde empatia seja mais forte que a norma, e o cuidado com a vida seja mais importante do que qualquer cardápio. Que essa “nova escuta” da prefeitura não seja só retórica de crise, mas o começo de uma verdadeira transformação.

Você acredita que esse tipo de caso acontece em outras cidades com frequência?

Trago fatos, Marília Ms.

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