Quando a indústria não pesquisa, ela copia e o preço é a invisibilidade



Nos últimos dias, a internet reagiu com desconforto e estranheza à divulgação da capa do novo álbum Feliz no Simples, do MC IG. A capa, lançada com pompa e destaque, guarda uma semelhança incômoda com Caju, álbum da artista Liniker, lançado em 2023. As cores, a composição, o gesto corporal, o fundo. Tudo parece familiar demais para ser coincidência. Mas este texto não é sobre MC IG. A polêmica vai muito além do nome de quem aparece na foto.

Quem entende os bastidores da indústria fonográfica sabe: muitas vezes, o artista não é o agente principal nas decisões sobre sua imagem. A capa de um disco, a identidade visual de uma era, o clipe, o figurino ,tudo pode estar sob domínio de agências, gravadoras, diretores de arte. E é aí que mora o problema.

Porque quando a indústria não pesquisa, ela copia. E quando ela copia, ela apaga. A pergunta não deveria ser "quem deixou isso acontecer?", mas sim "por que isso continua acontecendo?". Por que uma equipe inteira ,com acesso a recursos, profissionais e referências , opta por não mergulhar no processo criativo, não escutar, não aprender, não olhar com profundidade?

A capa de Caju não é uma pose. É um manifesto. É parte de uma trajetória artística construída por Liniker, uma mulher negra, trans, que carrega no corpo, na voz e na estética a ancestralidade de uma história frequentemente silenciada. Tudo em Caju é proposital. É afeto e dor. É território e deslocamento. É reinvenção e resistência.

Quando essa estética é reproduzida em um artista masculino, cis, hétero, já consolidado em uma indústria que o favorece por padrão, a mensagem original se esvazia. Não é homenagem, é apropriação. Não é inspiração, é repetição vazia. É a lógica da indústria que observa de longe os corpos que criam, inventam e transbordam , e, ao invés de valorizá-los, prefere extrair o que lhe parece "bonito" e plastificá-lo em um corpo que já tem espaço garantido.

Isso tudo que estamos vendo não é só preguiça criativa. É poder. É o poder da branquitude que escolhe o que vale ser reaproveitado. É o poder das gravadoras que lucram sem dar crédito. É o poder das mídias que aplaudem números e ignoram narrativas. É o poder de decidir o que vira tendência e o que segue à margem.

E isso tem consequências graves: a invisibilidade dos corpos que criam e inovam fora dos padrões dominantes. O esvaziamento do significado original. A transformação de arte em embalagem.

A gente precisa começar a chamar isso pelo nome: apagamento. Não é só estética parecida. É ausência de escuta. É descompromisso com a história por trás da imagem. É reprodução de desigualdades.

Sim, é possível ganhar dinheiro com arte. Mas não é possível continuar chamando de arte aquilo que não respeita o processo. Aquilo que lucra sem referência. Aquilo que brilha nos holofotes, mas não diz nada.

Por isso, é urgente celebrar  artistas que entrega conceito, estética, coerência, coragem e pertencimento. Que transforma a dor da marginalização em arte de vanguarda. Que mergulha no simbólico e devolve beleza. Que constrói não só álbuns, mas legados.

A indústria vai continuar premiando números, talvez. Mas a história , essa que a gente escreve com crítica, afeto e memória , vai lembrar quem realmente teve algo a dizer.

E a arte, a verdadeira arte, sempre reconhece quem não fugiu da profundidade.

Trago Fatos , Marília Ms.

Comentários

Matérias + vistas