Por que ler mais livros brasileiros? Porque o Brasil ainda não aprendeu a se ouvir.
Toda vez que me perguntam por que deveríamos ler mais livros brasileiros, eu lembro da Hilda Hilst. Não por causa do escândalo do Caderno Rosa ou pelas entrevistas cortantes, mas pela coragem de dizer o que todo autor brasileiro sente, mas poucos têm peito pra verbalizar: “Esse país não gosta de seriedade.” E pior, não gosta de seriedade quando ela fala português.
A frase parece exagerada? Então me diz: quantos brasileiros você conhece que se orgulham de conhecer cada episódio de uma série americana, mas nunca abriram Grande Sertão: Veredas? Quantos já leram Kafka, mas nunca tocaram em João Antônio? Quantos sabem recitar Bukowski, mas não suportam ouvir Paulo Leminski? A língua portuguesa aqui, no Brasil, é constantemente colocada de escanteio, como se fosse limitada demais, simples demais, colonizada demais para suportar grandes ideias, grandes paixões, grandes reflexões. E esse complexo de vira-lata linguístico se espalha como praga: o pensamento brasileiro é tolerado só quando vem enfeitado de estrangeirismos.
Hilda sabia disso. Sabia que escrever sério em português é quase uma afronta nacional. Que aqui, o escritor não é celebrado em vida, é ignorado. O país cospe nele. O mercado ignora. O público despreza. E se algum crítico resolve elogiá-lo, é só depois da morte, quando o autor já não pode responder nem cobrar que o tenham lido de verdade.
“Você não pode pensar em português”, ela diz. Porque pensar demais incomoda. Ainda mais quando o pensamento vem carregado da sonoridade do nosso chão, com a nossa gramática torta de tanto apanhar da história, com a nossa verdade suada, cabeluda, incômoda. Não basta escrever bem — é preciso escrever com sotaque estrangeiro, com vocabulário global, com alma colonizada. E se não fizer isso, vão chamar de marginal, de pornográfico, de difícil, de regionalista, de qualquer coisa que sirva pra deslegitimar o que é, na verdade, brutalmente honesto.
É por isso que precisamos ler mais livros brasileiros. Porque só lendo a gente aprende a se reconhecer. Só lendo a gente reverte essa lógica de que o Brasil é um país que exporta commodities e importa pensamento. A gente precisa ler Hilda Hilst, sim, mas também precisa ler Lygia Fagundes Telles, Carolina Maria de Jesus, Lima Barreto, Conceição Evaristo, Marcelino Freire, Milton Hatoum, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior. Ler com gosto, com frequência, com curiosidade , e não só porque o vestibular manda.
Porque o escritor brasileiro não quer só ser chamado de “genial”. Ele quer ser lido. Hilda disse isso com a sinceridade de quem passou 40 anos sendo ignorada: “Não adianta nada dizerem pra mim que eu sou excelente, aí eu pergunto, o senhor leu? Não, senhora, nunca li.” Quantos artistas brasileiros não foram premiados só depois de mortos? Quantas obras não ganharam prestígio só porque alguém lá de fora elogiou? É como se a gente só acreditasse no que é nosso quando é legitimado por outro.
E aí voltamos à pergunta: por que ler mais livros brasileiros? Porque talvez só assim a gente comece a acreditar que somos capazes de produzir beleza, crítica, filosofia e arte com o que é nosso. Porque talvez só assim deixemos de querer ser “a França da América Latina”, “o novo Japão”, “o futuro Estados Unidos”, e passemos a aceitar que ser Brasil já é profundo o bastante.
Se não nos lermos, seremos sempre um povo com dificuldade de memória. E quem não se lê, não se entende. Quem não se entende, se odeia. E quem se odeia, destrói sua própria cultura , para depois ir mendigar aprovação em outras línguas.
No fim da entrevista, Hilda diz, meio amarga, meio sarcástica: “Daqui a 50 anos vai ser ótimo. Eu na cova, acho que vai ser lindo, eu famosa.” E é isso que temos feito com os grandes nomes da literatura brasileira: enterrado-os vivos, e depois transformado suas lápides em altares. Mas, ao contrário do que parece, ainda há tempo.
É tempo de ler mais livros brasileiros , e de lermos a nós mesmos antes que sejamos apenas estátuas para selfies e nomes de biblioteca. Ainda dá tempo de ouvir Hilda, não só pela ousadia das palavras, mas pelo grito que ela embutia em cada uma delas: me leiam, pelo amor, me leiam em português.
Trago Fatos , Marília Ms.
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