PIX COMO MOEDA DE FÉ: O PROFETA, O MILAGRE E O ESPETÁCULO DO SAGRADO
"A fé que move montanhas hoje também transfere PIX. A moeda do milagre, agora, é digital."
Miguel, um adolescente de 14 anos, tornou-se nos últimos meses um dos personagens mais controversos da religiosidade midiática brasileira. Conhecido por realizar cultos onde rasga laudos médicos e promete curas de doenças graves como leucemia, câncer e pneumonia, Miguel reúne multidões em templos e milhões de visualizações nas redes sociais. O que antes era púlpito virou palco; o sermão, espetáculo; e a fé, uma performance regada a doações instantâneas via PIX.
"A rapidez que você vem é a rapidez que o milagre acontece."
Esse é um dos bordões repetidos por Miguel em seus cultos, em que convoca fiéis a transferirem valores generosos , "quatro pessoas para doar mil reais!" , numa espécie de leilão celestial onde Deus responde de acordo com a velocidade do depósito. Não há rituais litúrgicos tradicionais. Não há oração silenciosa. O sagrado está monetizado, e a cura, condicionada à contribuição financeira. Aqui, o dízimo se transforma em taxa de entrada para a bênção.
O ESPETÁCULO DO SAGRADO: RELIGIÃO COMO PERFORMANCE
O filósofo francês Guy Debord cunhou o conceito de sociedade do espetáculo, onde tudo se transforma em imagem e encenação. Em Miguel, vemos o exemplo mais explícito disso: um menino que se coloca como "profeta mirim", que se apresenta em vídeos virais, performa "línguas dos anjos" com frases desconexas em inglês , "Of the king, the power, demanded the bastard the king, the fairy goes mad" , e rasga diagnósticos médicos diante de aplausos. Tudo é feito para ser filmado, compartilhado, monetizado. A religião se torna produto e o culto, um algoritmo.
Em um vídeo que rodou as redes sociais, Miguel rasga o laudo de uma mulher diagnosticada com leucemia e anuncia, com autoridade de quem fala por Deus, a cura imediata. O laudo, claro, nunca foi reapresentado. Nem a suposta cura foi comprovada. E, como Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista, dizia: "uma mentira contada mil vezes torna-se verdade." A repetição da narrativa , que nasceu sem cordas vocais e tímpanos, mas foi curado aos 3 anos , é o que sustenta a imagem do profeta, não a evidência.
CARISMA, PODER E O CORPO COMO PALCO
Max Weber chamou isso de autoridade carismática: um tipo de liderança que se estabelece pela crença nas qualidades sobrenaturais de alguém. Miguel é carismático. Grita, chora, treme, impõe mãos, profetiza. O corpo dele se torna meio e mensagem. Mas como dizia Foucault, o corpo também é campo de disputa de poderes , e nesse caso, um corpo infantil, moldado para o consumo coletivo da fé e da cura, sob as lentes de celulares, doações e cultos performáticos.
Durkheim via a religião como fato social, algo que une uma comunidade por meio de rituais e símbolos compartilhados. O problema é que, no caso de Miguel, essa coesão social se dá não em torno do sagrado, mas do espetáculo. E quando a fé se transforma em moeda de troca e a esperança em mercadoria, não é mais religião , é manipulação.
PIX COMO SACRAMENTO DO CAPITAL RELIGIOSO
O dinheiro transferido por PIX se torna, nesse contexto, uma forma de sacramento moderno. Não mais água benta, não mais unção com óleo: é a transferência bancária que determina o valor da fé. Quanto mais você doa, mais próximo do milagre você parece estar. Um sistema de recompensa espiritual quase gamificado, onde seguidores competem para ver quem oferta mais rápido e mais alto, esperando em troca a aprovação divina . ou a promessa de um profeta mirim que nem sequer pode responder por si.
A EXPOSIÇÃO, O CANCELAMENTO E O CICLO DA VIOLÊNCIA DIGITAL
Com 15 anos, Miguel já foi idolatrado, ridicularizado e cancelado. Foi meme, foi alvo de críticas, foi exposto. A internet, que o alçou à fama, também tratou de destruí-lo com a mesma velocidade com que clicava em "compartilhar". O cancelamento, na era digital, é uma nova forma de punição coletiva, onde a vergonha pública se torna justiça simbólica.
Mas Miguel é, antes de tudo, um adolescente. E isso exige cuidado. A responsabilidade por esse espetáculo não é apenas dele, mas de toda uma estrutura: líderes religiosos, famílias, igrejas, algoritmos e uma sociedade que consome milagres como se fossem séries da Netflix.
FÉ OU CHARLATANISMO? MILAGRE OU MANIPULAÇÃO?
O Ministério Público já investiga. O Conselho Tutelar proibiu cultos e redes sociais. Mas o debate ainda está longe de terminar. O Brasil é um país profundamente religioso, mas também vulnerável às promessas de soluções mágicas. Em tempos de desespero, a esperança pode ser facilmente vendida , e comprada via QR Code.
Marx dizia que a religião é o ópio do povo. No caso de Miguel, ela parece ser também o PIX do povo. Quando a fé é instrumentalizada, perde sua essência. Quando milagres são prometidos em troca de dinheiro, deixam de ser expressão do divino e passam a ser práticas comerciais de alta periculosidade emocional e ética.
A pergunta final é: quanto vale sua fé?
Se ela couber num PIX, talvez já tenha sido vendida.
Trago Fatos, Marília Ms.
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