O show é nosso, mas o medo ainda é deles: quando a ocupação do espaço público é um ato de resistência




No país onde ser quem se é pode custar a vida, ir a um show gratuito na praia se torna um gesto político. A recente prisão de um homem que planejava um atentado à bomba contra o público LGBTQIA+ durante o show da Lady Gaga em Copacabana escancara, mais uma vez, a ferida aberta que o Brasil insiste em maquiar com slogans vazios de “diversidade”, enquanto naturaliza o ódio como paisagem urbana.

É simbólico , e trágico , que isso aconteça justamente num evento que deveria celebrar a liberdade. Um show com proposta inclusiva, sem catraca, sem ingresso, onde corpos historicamente marginalizados pudessem apenas existir, dançar, se amar e respirar alívio por algumas horas. Mas até ali, no coração da festa, o perigo se infiltrou. E isso diz muito mais sobre o nosso país do que sobre qualquer movimento extremista isolado.

Há uma violência latente no ar. Não precisa de um tiro, não precisa da bomba que, felizmente, não explodiu. A ameaça já é, por si só, uma forma de ataque. O medo se torna a grade invisível que separa quem pode ir e quem precisa pensar duas vezes. O trauma coletivo da população LGBTQIA+ não nasce apenas dos crimes já cometidos, mas da constante vigilância a que são submetidos.

Isso afeta a saúde mental, claro. Mas vai além. Afeta a liberdade de circular. A liberdade de ocupar. A liberdade de existir em público.

O espaço público, que deveria ser o território do comum, do compartilhado, da cidade como abrigo e não ameaça, torna-se um campo minado ,simbólica e literalmente. Não há ingresso, mas há a barreira do medo. Não há catraca, mas há o risco. E esse risco é distribuído de forma desigual.

Uma pessoa cis, branca, heterossexual, pode ir ao show da Lady Gaga para cantar, dançar, chorar com "Shallow" e ir embora. Mas uma pessoa trans, uma mulher lésbica, um jovem gay afeminado, um homem preto de saia e glitter, vivem essa experiência com um pé na alegria e outro no trauma. Estar ali é, ao mesmo tempo, celebração e resistência.

O Brasil, que lidera há anos o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans, é o mesmo que produz comerciais multicoloridos em junho e eventos “para todos” em setembro. Só que a inclusão verdadeira não se faz com palco e telão. Se faz com segurança, com respeito, com política pública, com presença do Estado onde o ódio ameaça florescer.

E o que vimos em Copacabana foi a revelação de que, mesmo nos momentos mais festivos, a existência LGBTQIA+ continua sendo monitorada, ameaçada, rejeitada.

Mas há algo ainda mais poderoso: milhões de pessoas ocuparam aquela praia mesmo assim. Mesmo diante do perigo. Mesmo com o terror rondando. Milhões foram e ficaram. Gritaram. Brilharam. Beijaram. Estiveram.

Porque o show da Gaga não foi só um show. Foi um gesto coletivo. Uma afirmação: "Estamos aqui. Existimos. E não vamos desaparecer." Foi um lembrete de que o lazer também é um direito. Que a cidade também pertence a quem ama fora da norma. Que dançar na areia pode ser tão político quanto qualquer protesto na Avenida Paulista.

O medo pode tentar barrar a ocupação desses corpos no espaço público. Mas o amor, a arte e a coletividade seguem abrindo caminhos. Não sem dor. Não sem risco. Mas com coragem. Porque, no fim das contas, a presença é a maior resposta ao ódio.

E por isso, mais do que nunca, precisamos proteger esses espaços, esses corpos, essas existências. Para que o próximo show, a próxima rua, a próxima festa não seja marcada pela ameaça, mas pela liberdade plena. Não basta dizer que todos são bem-vindos. É preciso garantir que todos estejam seguros.

Porque enquanto a cidade for só para alguns, ela será incompleta.

Trago Fatos , Marília Ms. 

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