O look da performance: quando o treino virou vitrine de privilégio



Houve um tempo em que roupa de academia era coisa pra esconder. Tecidos folgados, cores sóbrias, roupas baratas , porque, afinal, você estava ali pra suar, não pra desfilar. Mas o mundo girou, o capitalismo refinou suas estéticas, o Instagram elevou o ordinário à categoria de vitrine, e hoje o athleisure , essa mistura de “athletic” com “leisure” , virou um dos principais desfiles da vida urbana. Não é coincidência que o mesmo mundo que acelerou tudo até a exaustão, agora consuma como fetiche quem parece ter o tempo e o corpo sob controle.

Roupa de treino virou tendência no mesmo ritmo em que treinar se transformou em símbolo de status. O colchonete da yoga, o tapetinho de Pilates, o tênis de corrida com amortecimento de carbono , tudo virou elemento de um figurino que, cada vez mais, pouco tem a ver com saúde e mais com pertencimento. Não à toa, o look da academia migrou para o restaurante, o shopping e os eventos sociais. O que antes poderia ser lido como desleixo, hoje comunica algo diferente: “eu me cuido, eu tenho tempo, eu posso”.

A lógica por trás desse novo luxo é cruel, embora seja bem maquiada por cremes veganos, garrafinhas térmicas de vidro e legging de compressão. Num mundo onde todo mundo corre, quem consegue parar se torna referência. O esporte virou instagramável não porque a sociedade ficou mais saudável, mas porque existe algo de profundamente desejável , e inatingível para muitos – em quem tem o privilégio de cuidar de si com constância.

Enquanto a massa parcela bolsas de grife e falsifica tênis de mil reais pra performar pertencimento, o novo sinal de poder é outro: ter tempo. Ter tempo para treinar, para cuidar do corpo, para fazer skincare às 10h da manhã numa terça-feira, tomar matcha latte pós-aeróbico e ainda almoçar salmão orgânico com quinoa. Esse lifestyle deixou de ser sobre bem-estar e se tornou uma forma silenciosa ,e elegante , de dizer “eu não sou como vocês”.

E é por isso que marcas como Alo Yoga e Lululemon, ainda que não sejam grifes no sentido clássico, se posicionaram como símbolos de status. Vestir Lululemon não é só sobre conforto técnico, é sobre ser parte de uma elite que frequenta estúdios com parede de cimento queimado, trilha sonora de Florence + The Machine e protocolos estéticos alinhados com o algoritmo. E a Celine, ao lançar sua própria linha de roupas de treino, entendeu o recado: o novo luxo é performar leveza num mundo que pesa toneladas.

O fenômeno das clean girls também se encaixa aqui. Porque não se trata apenas do coque impecável, da pele iluminada e da unha de porcelana em tons neutros. Trata-se de viver (ou fingir viver) um estilo de vida onde tudo é controlado, bonito, saudável, limpo , inclusive as emoções. A estética é um símbolo, mas o que vende mesmo é a ideia de uma vida sem pressa, sem grito, sem caos. Algo que, convenhamos, não se compra em loja , mas que pode ser encenado, todos os dias, com o figurino certo.

Nesse cenário, o verdadeiro luxo não é mais o item caro, mas o tempo. O tempo de se cuidar, de respirar, de parar. O tempo de manter uma rotina que só é possível quando se tem estrutura, suporte, privilégio. Enquanto isso, a maioria trabalha em turnos dobrados, enfrenta transporte lotado, cuida de filhos, da casa e da mente esgotada, e vê de longe o culto ao corpo perfeito e à vida minimalista como algo distante, quase cruel.

A romantização do autocuidado virou um espetáculo. E o treino, antes símbolo de superação pessoal, se converteu num palco de distinção social. É a performance do bem-estar em sua versão mais polida: com look monocromático, cabelo no lugar, respiração controlada e zero suor visível.

No fim, quando o tempo vale mais que o dinheiro, ostentar vira questão de narrativa. E nada comunica mais poder hoje do que parecer que você tem o domínio sobre seu próprio tempo , ainda que isso custe a verdade. Porque, afinal, se a vida virou feed, que a gente pareça estar sempre leve, limpa e perfeita. Nem que, por trás do look de treino, o cansaço do mundo siga escondido sob um filtro vintage e um tênis de mil reais.

Trago Fatos , Marília Ms.

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