O Estúdio Ghibli, a Água e a Máquina: Reflexões Sobre o Futuro da Arte e da Cultura na Era da Inteligência Artificial



Mais uma vez, uma trend envolvendo inteligência artificial viraliza nas redes sociais e, mais uma vez, o debate ressurge. Dessa vez, foi o encantador universo do Estúdio Ghibli que virou combustível para a máquina: pessoas postando fotos transformadas em ilustrações no estilo dos filmes de Hayao Miyazaki, como se seus rostos tivessem sido desenhados à mão em algum rincão mágico do Japão. Só que não. Foi por meio de IA. E a polêmica, como era de se esperar, reacendeu.

A princípio, pode parecer inofensivo. É só mais uma brincadeira estética, certo? Errado , ou pelo menos, não tão simples assim.

Entre as críticas levantadas, uma das mais consistentes diz respeito ao impacto ambiental da IA, mais precisamente ao consumo de água para resfriamento de servidores. A água, recurso finito, vem sendo drenada em volumes cada vez maiores para manter o funcionamento das máquinas que possibilitam desde memes até cálculos complexos. Empresas de tecnologia já admitiram aumento exponencial no uso de água nos últimos anos. Só que, diferentemente do que acontece com o chuveiro de 20 minutos do proletariado, isso raramente vira manchete nos jornais.

Uma das respostas mais sarcásticas nas redes sociais diz muito sobre o estado atual da discussão: “Se a água acabar, peço para o Chat EPT gerar mais.” Uma piada que escancara o abismo entre a consciência crítica e o consumo passivo que a era digital nos oferece.

Outros usuários questionaram o foco dessa crítica. Não é irônico que se aponte o dedo para quem usa IA para gerar uma artezinha, mas se ignore o impacto devastador de setores como a indústria têxtil, a agropecuária e o fast fashion? Estamos culpando o indivíduo comum enquanto desviamos o olhar das estruturas que verdadeiramente lucram com a destruição do planeta. Essa não é uma novidade: é uma estratégia histórica.

Mas nem só de ecologia se fez o debate. A ética e os direitos autorais dos artistas também entraram em cena. O uso do estilo visual do Estúdio Ghibli , sem autorização, sem respeito ao trabalho autoral, sem alma , reacendeu o temor de que a IA seja uma substituta fria para a arte humana. Um usuário foi direto: “É uma máquina desalmada alimentada com pedaços do trabalho de artistas reais, que passam horas, dias, anos, construindo estética e sentimento.” Outro, mais ríspido, afirmou que a IA “só gera erro, promove incompetência e deve ser encerrada.”

Essas vozes se somam ao receio crescente de que a arte ,aquela feita de suor, tempo e sentimento, esteja sendo descartada em nome da eficiência e da velocidade. O mesmo processo que industrializou a comida e matou sabores pode estar acontecendo com a cultura.

Mas será que a Inteligência Artificial é mesmo o vilão? Ou será que o problema é o nosso modo de consumo, cada vez mais ansioso, raso e imediatista? Essa reflexão nos leva a um ponto central: o que estamos escolhendo consumir , e por quê?

É aqui que entra o trecho mais profundo da discussão, que escapa do factual para mergulhar na crítica social: “Se você não se interessa por arte, literatura, música, cultura… pelo que você se interessa?” Vivemos em uma era em que nos dizem o tempo todo que temos liberdade. Mas liberdade pra escolher o quê? Quando a única opção cultural é uma trend reciclada do TikTok ou uma arte plastificada feita por IA, não estamos sendo livres. Estamos sendo guiados , alienados sob a ilusão da escolha.

Como já dizia Herbert Marcuse em A Ideologia da Sociedade Industrial, não é o número de opções que define a liberdade, mas sim a natureza daquilo que nos é oferecido para escolher. E o que está sendo oferecido a nós hoje é cada vez mais superficial, automático, vazio.

O problema, portanto, não está apenas na IA que desenha como o Estúdio Ghibli. Está em nós, enquanto sociedade, que estamos aceitando consumir cultura como se fosse fast food. Sem critério. Sem reflexão. Sem se importar com a origem, com a ética, com o impacto.

Transformar sua selfie em arte Ghibli pode parecer divertido , e talvez seja, num nível estético. Mas se não houver consciência crítica sobre o que está por trás disso, estaremos aceitando viver em um mundo onde a arte é um algoritmo, a cultura é uma trend e o pensamento crítico é uma raridade.

A pergunta que resta é: vamos mesmo aceitar isso passivamente? Ou vamos ampliar nosso repertório cultural e escolher conscientemente o que consumimos e como vivemos?

A cultura não é supérflua. A cultura é a alma coletiva de um povo. E, no momento em que deixamos a cultura ser substituída por cópias automáticas, deixamos também que a nossa identidade se dissolva em um feed sem fim.

É hora de parar de viver no automático. É hora de pensar.

Trago Fatos, Marília Ms

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