O eco do trauma de classe: o grito que mascara o silêncio


Jojo Todynho é, talvez sem perceber, o retrato caricato de alguém que foi profundamente marcado pelo trauma da pobreza. Não apenas viveu a escassez, mas foi moldada por ela. Subiu, venceu, ganhou fama e dinheiro, mas ainda carrega no peito as feridas abertas de um passado que grita mesmo quando ela tenta silenciar. Jojo ascendeu economicamente, mas essa nova posição social ainda não foi totalmente subjetivada. É como se o corpo tivesse chegado antes da mente. O salto de classe foi brusco, e agora, com a possibilidade da educação e do pensamento mais elaborado, ela se depara com algo mais difícil do que vencer na vida: compreender sua nova posição e, principalmente, lidar com a contradição que isso carrega.


Pensar dói. Pensar exige cavar dentro de si, rever crenças, escancarar fragilidades, admitir que, por trás da fala forte e da voz que domina ambientes, ainda existe a menina que não tinha o que comer, que andava de chinelo furado, que foi descartada por um país que desumaniza a pobreza. E pensar quebra a ilusão do pertencimento fácil. Porque não basta ter dinheiro. É preciso entender o que se faz com ele. É preciso entender o que se quer ser depois de ter deixado de ser o que se era. Jojo ainda está nesse processo. E o caminho da consciência é muito mais longo e tortuoso do que o da fama.


Ela já repetiu discursos da esquerda. Falou de favela, de pobreza, de racismo, de opressão. E agora repete os discursos da direita, critica o SUS, exalta meritocracia, flerta com o conservadorismo. Mas a estrutura permanece intacta: repetir para pertencer. O que está em jogo não é ideologia, é sobrevivência. É se adaptar ao meio para não ser excluída dele. É buscar reconhecimento onde antes só havia exclusão. Ela aprendeu que falar alto é uma forma de ninguém ver a ferida. Que o “eu falo mesmo” é uma armadura. Que o grito pode ser confundido com coragem. Mas, muitas vezes, é apenas desespero mal disfarçado.


Quando Jojo critica o SUS, ela não o faz com vontade de melhorar o sistema. Ela o desqualifica como quem desqualifica a própria origem. Como quem tenta se distanciar do cheiro da fila de hospital público, da sensação de impotência diante de um atendimento precário, do som das macas nos corredores lotados. Ela fala como quem quer esquecer que um dia dependeu da saúde pública para sobreviver. E, ao desqualificar o SUS, tenta justificar seu afastamento simbólico da pobreza. Mas é impossível apagar o que se é. É impossível matar o passado apenas com novas roupas ou diplomas.


A figura que ela representa hoje é a caricatura da mulher forte, dona de si, sem papas na língua. Mas por trás disso há um grito, um pedido de aceitação. Aquele grito que é confundido com autenticidade, mas que na verdade é ruído. E o ruído esconde um silêncio ensurdecedor: o silêncio de quem ainda não sabe onde está, de quem ainda não se reconhece nesse novo mundo, de quem precisa ser aceita, mas teme perder a identidade ao ser aceita.


O problema não está em mudar de opinião. O problema está em não se dar tempo de elaborar a mudança. Jojo virou símbolo de um país que não dá tempo para ninguém pensar. Que exige posicionamento imediato, que cobra coerência onde antes havia sobrevivência. Um país que também ri da figura dela enquanto a consome. Que aplaude quando ela grita, mas não escuta quando ela silencia. Que aponta os dedos sem compreender as dores. Que exige que o pobre ascendido renegue a pobreza e abrace uma nova identidade, como se fosse possível amputar o passado sem sangrar.


No fundo, Jojo é o espelho de muitos brasileiros. Gente que cresceu vendo a mãe chorar porque não tinha dinheiro pro gás. Gente que enfrentou ônibus lotado, fila de hospital, desprezo nas entrevistas de emprego. Gente que venceu, mas nunca conseguiu entender se pertence ao novo lugar. Porque o novo lugar é cheio de códigos, exigências, silêncios. E, às vezes, a única forma de se fazer ouvir é falando alto demais.


Mas o grito, sem reflexão, vira apenas barulho. E o barulho, por mais estrondoso que seja, não cura o vazio de não saber quem se é. Jojo ainda está buscando esse lugar. Como muitos de nós. E talvez seja aí que mora o verdadeiro drama.

Trago Fatos , Marília Ms. 


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