Não é o streaming que está acabando com os cinemas. É o estacionamento de R$ 20, a Coca-Cola de R$ 12 e a pipoca de R$ 40.
Por muito tempo, o cinema foi mais do que uma simples sala escura com uma tela gigante: era o palco do primeiro beijo, o encontro de sábado com a turma, o refúgio dos solitários, o abrigo dos apaixonados pela sétima arte. Uma experiência coletiva onde todos riam, choravam e se assustavam juntos. Uma espécie de ritual moderno que unia estranhos sob a mesma emoção, embalados por som e imagem em proporções hipnóticas. Mas hoje, esse ritual está ameaçado , e não é pelo streaming, como muitos adoram culpar.
É cômodo demais jogar toda a responsabilidade sobre plataformas como Netflix, Prime Video e Disney+. Elas, de fato, transformaram o consumo de conteúdo audiovisual, oferecendo praticidade e variedade a preços muitas vezes acessíveis. Mas não são as plataformas digitais que estão matando o cinema. O que está, de fato, expulsando o público das salas de exibição são os altos custos que se acumularam ao redor dessa experiência, que deveria ser cultural, acessível e popular , e não um luxo.
Vamos aos fatos. Ir ao cinema deixou de ser uma atividade cotidiana para muitas famílias. O ingresso, que já não é barato, se torna ainda mais inviável quando somado a uma série de gastos paralelos. Um simples estacionamento pode custar R$ 20, especialmente em shoppings de grandes centros urbanos. Um refrigerante, muitas vezes apenas um copo cheio de gelo, ultrapassa os R$ 12. A pipoca, símbolo máximo da experiência cinematográfica, pode chegar a R$ 40. Isso sem contar as taxas de conveniência para compra online, os combos “premium” com baldes temáticos, e os óculos 3D ,que, mesmo reutilizáveis, ainda são cobrados em muitos lugares. No final, uma saída para ver um filme pode ultrapassar os R$ 150 para um casal. Para uma família inteira, então, se torna um luxo fora da realidade.
Enquanto isso, o cinema em casa se modernizou. As pessoas estão montando verdadeiras salas de exibição em seus lares, com televisores de alta resolução, soundbars, luz controlada e almofadas confortáveis. Não há filas, ninguém chuta a sua cadeira, e você pode pausar o filme para ir ao banheiro sem perder nenhuma cena. E, principalmente: você pode fazer sua pipoca por R$ 2 e tomar um refrigerante de dois litros por R$ 8. Não é concorrência desleal. É bom senso e economia.
O que está em jogo aqui não é o fim do cinema como arte, mas o declínio da forma como a indústria cinematográfica vem sendo comercializada e precificada nos cinemas físicos. O cinema enquanto linguagem nunca esteve tão vivo. Produz-se mais audiovisual do que nunca. Temos acesso a filmes de todo o mundo, cineastas independentes ganhando visibilidade e histórias plurais sendo contadas. Mas os templos do cinema, as salas que durante décadas abrigaram o sonho coletivo da imagem em movimento, estão se tornando espaços elitizados.
O paradoxo é que, ao tentar compensar as perdas de público com preços abusivos, muitos complexos de cinema aceleram seu próprio esvaziamento. É como uma corda sendo puxada de ambos os lados: enquanto o público se afasta por não conseguir arcar com os custos, os cinemas aumentam ainda mais os preços para equilibrar as contas. Um círculo vicioso que ameaça a sustentabilidade do próprio modelo.
Não, não é o streaming que está acabando com os cinemas. É a desconexão entre a experiência proposta e a realidade financeira do público. É a gourmetização de um hábito popular. É a recusa em reinventar a lógica de funcionamento, tornando-a mais acessível, mais democrática, mais voltada para o que realmente importa: o filme, a história, a emoção compartilhada.
Enquanto os exibidores se concentram em baldes temáticos de pipoca, poltronas reclináveis e serviços VIP, esquecem o básico: tornar o cinema novamente um espaço para todos. Mais do que tecnologia de ponta, o público quer respeito ao seu bolso, à sua rotina e à sua possibilidade de escolha. Não adianta oferecer a melhor tela IMAX do mundo se, para sentar-se diante dela, é preciso escolher entre o ingresso e o jantar do dia.
Se quisermos salvar o cinema , e não apenas a sala de exibição, mas o hábito de ir ao cinema , é preciso repensar o modelo de negócios, reduzir os custos paralelos, deselitizar o acesso e reencantar o público. Do contrário, não será o streaming que nos derrotará, mas a ganância e a miopia de um mercado que esqueceu de ouvir sua audiência.
O cinema não morre pela inovação. Morre pela exclusão. E está na hora de reverter esse roteiro, antes que o último ato se encerre , em silêncio.
Trago Fatos , Marília Ms.
Comentários
Postar um comentário