Não caia nessa de "amizade de baixa manutenção": relações humanas não são máquinas

Vivemos tempos de afeto terceirizado. De relações que sobrevivem no modo avião, com mensagens que se acumulam no WhatsApp e encontros que são eternamente adiados. E, nesse contexto, surgiu um termo aparentemente inofensivo, até simpático: "amizade de baixa manutenção". Parece até algo prático, conveniente, compatível com os tempos modernos. Mas, quando a gente para para pensar com um pouco mais de profundidade, percebe o quão sintomático e problemático é esse tipo de relação , e o quão doente está o nosso entendimento sobre o que é amizade.

"Baixa manutenção" é um termo técnico, não emocional

Primeiro, é necessário pontuar o óbvio: manutenção é algo que se faz em objetos. Em aparelhos, em carros, em sistemas de ar-condicionado. O uso desse termo para se referir a vínculos humanos escancara o quanto estamos tratando pessoas como coisas. Quando dizemos que alguém é "de baixa manutenção", estamos, no fundo, transformando o outro em uma conveniência, em uma funcionalidade. E amizade não deveria funcionar com base em utilidade.

A lógica da manutenção baixa parte de uma premissa: a de que qualquer laço que exija nossa atenção, cuidado ou tempo é excessivo. E aqui já está a primeira grande armadilha. Porque se a sua amizade não exige presença, escuta, trocas, afeto e esforço, ela é apenas uma lembrança com data de validade estendida , um laço fantasma. Não se engane: afeto que não é cultivado vira saudade. Vira passado.

A lógica produtivista que está engolindo os afetos

Medir relações pelo esforço que elas demandam é aderir a uma lógica completamente produtivista , a mesma que nos adoece. A mesma que nos convenceu de que tempo livre é desperdício e que a vida só tem valor se for rendendo algo. Nesse raciocínio, amizades que demandam atenção se tornam "pesadas", enquanto aquelas que aceitam o distanciamento constante são "evoluídas". Só que esse tipo de "evolução" tem custo. E o custo é humano.

A amizade de baixa manutenção é um retrato da vida como ela tem sido levada: um corre sem pausa, um burnout coletivo, uma corrida por estabilidade que, paradoxalmente, nos deixa mais instáveis emocionalmente. Estamos cercados de conhecidos, mas isolados. Seguimos perfis, mas não sabemos como estão as pessoas que mais importam. Compartilhamos memes com mais frequência do que dividimos silêncios ou desabafos.

A sociedade do cansaço e a falência do tempo livre

Nos identificamos com a ideia de uma amizade que não exige nada porque, muitas vezes, não temos nada para dar. E isso não diz sobre o afeto que sentimos, mas sobre o sistema em que estamos mergulhados. Um sistema onde o trabalho consome nossas horas, nossas energias, nossas emoções. Um sistema que transformou o tempo livre em luxo, o ócio em culpa e a disponibilidade afetiva em fardo.

Quantas vezes você pensou em ligar para alguém e desistiu porque estava cansado demais? Quantas vezes adiou um encontro por não ter tempo "suficiente"? A verdade é que a maioria das pessoas está exausta. A questão central, portanto, não é encontrar amigos que não demandem nada de nós. É entender por que estamos sem recursos básicos , emocionais, físicos, temporais , para nutrir vínculos importantes.

Amizade exige cultivo ,e isso é um ato de resistência

Manter uma amizade viva exige presença, e presença não é só física: é mental, emocional, é se importar. É perguntar como o outro está e realmente querer ouvir a resposta. É lembrar do aniversário sem a ajuda do algoritmo. É sair de casa para um café mesmo quando a cama parece irresistível. É chorar junto, rir junto, incomodar-se com a ausência e não naturalizá-la.

Claro que a vida adulta tem seus desafios. Claro que não vamos conseguir manter a mesma frequência de antes. Mas isso não significa que devemos transformar a ausência em regra. A amizade não sobrevive apenas de boas intenções. É preciso ação. É preciso insistência. É preciso priorizar.

E insistir em vínculos profundos, hoje, é um ato político. É dizer "não" a uma sociedade que quer que você seja só produtivo, nunca vulnerável. É desafiar o tempo escasso com momentos de presença plena. É oferecer tempo, mesmo quando ele é pouco. Porque, no fundo, a gente não precisa de amigos que não cobram nada. A gente precisa de uma sociedade que não nos sugue tudo.

A saúde emocional pede vínculos reais

Estudos mostram o óbvio que tentamos esquecer: laços sociais consistentes melhoram nossa saúde mental, reduzem o estresse, fortalecem nosso sistema imunológico e prolongam a vida. Quando deixamos nossas amizades adormecerem, não estamos apenas prejudicando nossa vida social , estamos nos afastando da possibilidade de sermos mais saudáveis e felizes.

Portanto, da próxima vez que você ouvir (ou disser) que tem uma amizade "de baixa manutenção", pense se isso é mesmo uma qualidade… ou um sintoma de um problema maior. E se for o segundo caso, talvez seja hora de reavaliar. Não a amizade em si, mas a vida que temos levado. Porque amigos, como jardins, não florescem sozinhos. Precisam de sol, de rega, de presença.

E nenhuma máquina, por mais avançada que seja, saberá te abraçar num dia difícil. Não caia nessa.

Trago Fatos, Marília Ms..

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