E aí, você tem preconceito com crente? Ou melhor: com evangélico?
Diz-se por aí, com frequência cada vez maior e sem qualquer constrangimento, que “evangélico é tudo chato”, “crente é tudo homofóbico”, “só fala de Deus e política”, “só pensa em dízimo e Jair Bolsonaro”. Mas essa generalização, ainda que se ampare em exemplos reais e problemáticos, está longe de ser inocente. Na verdade, ela escancara um preconceito social que mistura elitismo, racismo, e a velha e cansativa repulsa ao que é pobre e preto.
O incômodo crescente que muitos setores da classe média ilustrada têm com os evangélicos brasileiros vai além da crítica a certos líderes religiosos reacionários , ele se manifesta, muitas vezes, como uma verdadeira aversão cultural. Detestar evangélico virou um esporte de salão de gente progressista. Mas vamos falar sério: quando você diz que detesta crente, você está mesmo falando de religião? Ou está disfarçando um velho desprezo pelo povo pobre, preto e periférico?
Afinal, quem são os evangélicos no Brasil? Segundo os dados mais recentes, trata-se de um grupo majoritariamente formado por mulheres, negras, trabalhadores informais, moradores das periferias urbanas. São aqueles que, historicamente, sempre foram invisibilizados e negligenciados pelo Estado, pela elite branca, e, paradoxalmente, também pelos setores que dizem lutar por justiça social. Ser evangélico, no Brasil, é ,muitas vezes , a única forma de pertencimento coletivo, de amparo emocional e de organização comunitária que resta para o povo pobre. A igreja virou centro social, psicológico, musical, cultural, às vezes até jurídico. E incomoda, sim. Incomoda quem acredita que saber citar Adorno é mais relevante do que cozinhar para a vizinha doente.
Michelle Alexander nos mostrou que o racismo é dinâmico, vivo, inteligente: ele se atualiza o tempo todo. E a forma mais recente desse fenômeno não está necessariamente na recusa ao que é explicitamente negro ou indígena, mas na rejeição à cultura preta viva e presente. É por isso que a elite cultural brasileira reverencia o samba de Cartola, mas ridiculariza o funk de MC Carol. Aceita o candomblé no figurino da novela das seis, mas ainda chama de “macumbeiro” o vizinho do terreiro. Aplaude a ancestralidade quando embalada em espetáculos de teatro contemporâneo, mas ri com desdém do culto pentecostal no galpão da favela.
E aqui entra um ponto incômodo, porém inescapável: a religião evangélica é hoje a expressão mais popular e negra do Brasil. Isso não significa ignorar o conservadorismo ou os abusos presentes em vários segmentos, mas sim compreender que esses fiéis são também vítimas de um sistema que os empurra para as margens e, quando eles se organizam em comunidade, também os ridiculariza.
Por outro lado, as religiões de matriz africana, depois de décadas de repressão, começam a ganhar certa legitimação , mas, veja bem, uma legitimação controlada, elitizada, estetizada e embranquecida. O culto que antes era perseguido agora é aceito, desde que esteja nas mãos de artistas brancos, em espaços gentrificados, em linguagem “bonita”. A arte preta do presente continua sendo indigesta , ela precisa primeiro morrer para ser respeitada.
A música gospel, por exemplo, incomoda profundamente. Basta Caetano Veloso cantar uma música de louvor para surgir uma torrente de críticas vindas de quem, paradoxalmente, defende a pluralidade cultural. Mas Caetano sabe o que está fazendo: ele entende que a força da música brasileira não está nas salas de concerto, mas nas vielas das comunidades, nos terreiros, nos cultos, nas rodas de samba, nos salões de forró, nos bailes funk. O evangelho cantado por vozes pretas da periferia é parte do mesmo motor que moveu a música popular brasileira ao longo do século XX.
O problema não está na fé, mas na cor e na classe de quem a exerce. Porque quando Chico Buarque canta sobre Deus, é poesia; quando é uma mulher preta do Capão Redondo, é alienação. Quando Gilberto Gil canta "Andar com fé eu vou", é sofisticado; quando o coral da Assembleia canta a mesma coisa, é cafona.
Quando é o preto e pobre falando de espiritualidade, é “fanatismo”. O intelectual médio, que defende o pluralismo na teoria, na prática não aguenta ouvir um culto sem se revirar por dentro. Por quê? Porque ainda é mais fácil aceitar a arte preta morta do que encarar a arte preta viva.
E é exatamente aí que mora o perigo de uma esquerda que esqueceu o povo. Que aprendeu a amar o oprimido na abstração, mas não suporta a estética, o cheiro, a voz, a fé do oprimido concreto. Que diz lutar contra o racismo, mas perpetua um racismo renovado, travestido de crítica cultural. Que defende o povo enquanto esse povo se comporta como ela deseja. Que prefere os pretos revolucionários da teoria às mães pretas de saia comprida, bíblia na mão e louvor na boca.
Moral da história? Não precisa gostar de crente. Mas se você não gosta de evangélico, questione o porquê. Porque, talvez, você não deteste tanto a religião em si, mas sim o fato de que ela é praticada por quem você, no fundo, sempre teve dificuldade de aceitar como legítimo: o pobre, o preto, o favelado. O mesmo que o sistema explora , e que, mesmo assim, resiste. Inclusive com fé. Inclusive com louvor. Inclusive com Bíblia na mão.
E isso, convenhamos, é muito mais revolucionário do que qualquer thread de Twitter.
Trago Fatos , Marília Ms.
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