Dua Lipa lê mais que você. E talvez mais do que muito booktoker por aí.
Pouca gente sabe, mas entre um show e outro, hits mundiais e capas de revista, Dua Lipa está lendo. E lendo muito. E não qualquer coisa. A cantora montou um verdadeiro mapa afetivo, político e cultural no seu clube do livro , um projeto dentro do Service95, plataforma que criou para compartilhar dicas de estilo de vida, lugares que visitou, músicas que escuta, filmes que vê, e, claro, os livros que a atravessam. Dua lê. E lê bem. Lê com coragem, lê com esquisitice, lê com fome.
Em tempos em que a leitura é frequentemente performada nas redes sociais para parecer intelectual, ou reduzida a listas genéricas de autoajuda reciclada, Dua Lipa dá um passo para o lado e apresenta uma curadoria que é, antes de tudo, profundamente humana. Sua lista de leituras , que um fã, abençoado seja, reuniu no Goodreads , é um caos ordenado, uma montanha-russa emocional, uma aula de interseccionalidade literária.
Tem de tudo. Começamos com Swimming in the Dark, um romance queer delicado e devastador, ambientado na Polônia comunista. Seguimos para Cem Anos de Solidão, obra-prima do realismo mágico latino-americano. E do nada, Misery e O Instituto, de Stephen King, duas pancadas de thriller psicológico e ficção sobrenatural. É como se o cérebro da cantora tivesse várias gavetas abertas ao mesmo tempo: uma para a nostalgia melancólica, outra para o terror inventivo, outra para a crítica social, e todas funcionando simultaneamente.
A lista mergulha fundo no sofrimento humano, sem medo. Uma Vida Pequena, A Redoma de Vidro, Pessoas Normais. Livros que incomodam, que doem, que pedem fôlego entre os capítulos. E aí a gente se pergunta: Dua, tá tudo bem mesmo? Porque não é uma curadoria de conforto, é uma curadoria de desconforto. De quem busca atravessar a experiência humana com olhos abertos. De quem não se contenta com leituras mornas.
Mas o mais interessante , e importante , é o recorte cultural da seleção. Não é uma estante eurocêntrica. Há autores e autoras do México, Vietnã, França, Nigéria, Coreia do Sul. Tem feminismo, ficção especulativa, crítica racial, distopias e amor adolescente. É uma leitura do mundo, não só do ego. É leitura como experiência de alteridade, não só como identificação.
E isso tem muito valor.
Num mercado editorial muitas vezes pautado pelo algoritmo e por tendências efêmeras do TikTok, ver uma artista global como Dua Lipa se propor a compartilhar obras densas, globais, diversas e até mesmo "difíceis" é um ato político. Ela podia usar sua influência para vender best-sellers pré-mastigados ou reforçar a lógica do entretenimento fast food. Mas opta por indicar obras que exigem pausa, silêncio, escuta. Livros que mexem com as estruturas. Que fazem chorar, pensar, repensar.
O clube do livro da Dua Lipa é, em essência, um convite à complexidade. E talvez por isso ele seja tão necessário hoje. Em uma era de distrações constantes, onde tudo precisa caber em 15 segundos, ela propõe algo antigo e subversivo: sentar e ler. Desacelerar e refletir. Se permitir sentir sem filtro.
É também sobre quebrar estereótipos. Celebridades pop ainda são frequentemente vistas como superficiais, como se inteligência e beleza fossem incompatíveis. Como se quem dança hits nos palcos não pudesse chorar com Sylvia Plath ou mergulhar nas profundezas de García Márquez. A leitura de Dua Lipa, nesse sentido, é uma afirmação silenciosa: cultura pop e cultura literária não são opostas. Elas podem , e devem , dialogar.
E o que aprendemos com essa curadoria tão aleatória quanto coerente? Que gosto literário é um espelho da subjetividade. Que ninguém é só um gênero, uma estética, uma linguagem. E que ler não é sobre parecer mais culto, mas sobre se permitir viver várias vidas numa só.
Dua Lipa, sem alarde, nos lembra que a leitura ainda é um dos atos mais íntimos, revolucionários e libertadores que podemos praticar. E faz isso do jeito mais bonito: lendo sem pedir desculpas por ser eclética. Por isso, sim, Dua Lipa lê mais , e melhor , que muito booktoker por aí. Porque ela não lê pra provar nada. Ela lê porque é urgente. Porque é necessário. Porque é prazer. Porque é mundo.
E que bom que ela compartilha.
Trago Fatos, Marília Ms.
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