Dois pesos, duas medidas: a fala da prefeita de Aracaju e a lupa seletiva da fiscalização ambiental em Sergipe
Mais uma vez, a política sergipana nos presenteia com um episódio revelador , não apenas sobre o modo de administrar, mas sobre como a narrativa é utilizada como ferramenta para moldar, justificar e, em certos momentos, desviar responsabilidades. Em recente entrevista à TV Atalaia, a prefeita de Aracaju lançou uma crítica pública à Adema (Administração Estadual do Meio Ambiente), sugerindo que o órgão estadual estaria usando "dois pesos e duas medidas" ao aplicar maior rigor à capital em comparação ao interior do estado.
O estopim da polêmica foram as fiscalizações em torno da empresa Renova, responsável pelo serviço de coleta de lixo em Aracaju, que recentemente teve seus veículos paralisados temporariamente por supostas irregularidades ambientais. A prefeita se defendeu, afirmando que a gestão já havia regularizado todos os pontos apontados e que o rigor da Adema estaria sendo injustamente concentrado na capital, enquanto o interior do estado permanece à margem de qualquer atuação efetiva.
Mas o que essa fala realmente revela?
1. A retórica do “nós contra eles” e o apelo à emoção
Ao dizer que “não é a prefeita que sofre, é a população”, a gestora transfere a responsabilização pelo caos nos serviços públicos diretamente para o órgão fiscalizador. Isso é uma estratégia antiga, quase clichê: quando a cobrança vem, se faz do povo o escudo. A população passa a ser retratada como vítima de uma estrutura técnica que apenas cumpre seu papel legal: fiscalizar. Mas a quem interessa transformar uma ação fiscal legítima em perseguição política?
2. A desproporcionalidade como denúncia seletiva
A crítica ao suposto descaso da Adema com o interior é válida e precisa ser debatida. De fato, há inúmeros municípios interioranos em Sergipe que operam em total desrespeito às normas ambientais, inclusive com lixões a céu aberto, esgotos sem tratamento e coleta de lixo deficiente. No entanto, o que deveria servir como argumento para expandir a fiscalização se torna, nas palavras da prefeita, uma tentativa de deslegitimar a atuação do órgão quando ela atinge sua própria gestão. Ou seja: ao invés de exigir mais rigor no interior, a crítica soa como uma tentativa de reduzir o rigor na capital.
3. Renova e os bastidores de um contrato polêmico
A empresa Renova não é novidade nos noticiários , e nem nas controvérsias. Desde o início de seu contrato com Aracaju, questões envolvendo a qualidade dos serviços prestados, denúncias trabalhistas e problemas ambientais têm circulado. Quando os carros da Renova foram impedidos de operar por não cumprirem normas ambientais, a Adema fez o que lhe cabe: agiu dentro da legalidade. Alegar que o rigor é excessivo porque há “sofrimento da população” é ignorar que o papel da fiscalização é justamente evitar sofrimentos futuros , como contaminações, acidentes ou degradações silenciosas, que atingem principalmente os mais pobres.
4. O uso político das instituições técnicas
A declaração da prefeita também levanta outro ponto perigoso: a tentativa de politizar a atuação de órgãos técnicos e autônomos. Se a Adema, de fato, atua com desigualdade entre capital e interior, cabe apuração formal, com relatórios e dados. Mas a insinuação pública, sem provas concretas, coloca em xeque a credibilidade de uma instituição cuja função é zelar pela saúde ambiental de todo o estado. E isso abre um precedente perigoso: o de que o gestor que for incomodado por uma fiscalização pode simplesmente colocar a culpa numa suposta perseguição.
5. Sergipe é nosso: mas de quem é a responsabilidade?
No fim da entrevista, a prefeita afirma que “Sergipe é nosso” e que o rigor deveria ser para todos. Concordamos plenamente. Mas é justamente por Sergipe ser de todos que precisamos de fiscalizações sérias, independentes e abrangentes , não seletivas, mas também não silenciadas por conveniência política.
Se há denúncias sobre omissões no interior, que se cobre. Mas que isso não sirva de cortina de fumaça para mascarar falhas no cumprimento de obrigações em Aracaju. A crítica, nesse caso, deveria ser um convite à ampliação da vigilância, e não à suspensão dela.
Em tempos em que a confiança nas instituições públicas está fragilizada, discursos como esse acendem alertas: quando a fiscalização incomoda mais do que a negligência, talvez o problema não esteja na lupa, mas no que ela revela.
Trago Fatos, Marília Ms.
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