China: o socialismo que “deu errado” e virou potência , ou como a história é mais complexa do que os slogans



Se o socialismo deu errado, por que a China é hoje a segunda maior potência do mundo? Essa pergunta aparece com cada vez mais frequência, sobretudo diante de vídeos que viralizam nas redes sociais mostrando cidades futuristas como Shenzhen, onde se paga com a palma da mão, táxis não têm motoristas e drones fazem entregas em minutos. Mas por trás da estética high-tech e da admiração embasbacada, existe uma história política, econômica e cultural muito mais complexa do que os vídeos de três minutos conseguem explicar. E, acima de tudo, uma crítica necessária ao reducionismo com que tentam tratar um tema que envolve séculos de disputas de poder.

Afinal, estamos falando de um país que foi colônia ocidental, que sofreu invasões, que sobreviveu a fomes catastróficas e revoluções internas. Um país que não seguiu o roteiro do Ocidente, mas que também não encarnou o socialismo utópico com o qual tanto sonharam os teóricos do século XIX. A China não é nem um “fracasso comunista” nem um “sucesso capitalista”. É, antes, a maior prova viva de que o mundo real raramente se encaixa nas caixinhas ideológicas que tentamos impor.

O que foi o “socialismo com características chinesas”?

Após a Revolução Comunista de 1949, liderada por Mao Zedong, a China tentou aplicar um modelo socialista radical: coletivização forçada da terra, centralização absoluta da economia, campanhas como o “Grande Salto Adiante” e a “Revolução Cultural” que resultaram em fome, repressão e caos social. É inegável: essa fase foi marcada por autoritarismo, atraso econômico e destruição cultural.

Mas nos anos 1980, com a chegada de Deng Xiaoping ao poder, algo inédito aconteceu: a China manteve o controle político centralizado do Partido Comunista, mas passou a adotar práticas econômicas capitalistas , abertura ao mercado, incentivo ao empreendedorismo, zonas econômicas especiais e estímulo à inovação. Foi essa mistura aparentemente contraditória que ganhou o nome de “socialismo com características chinesas”. Na prática, um capitalismo de Estado com controle autoritário.

O que isso significa na realidade?

Significa que a China construiu arranha-céus, trens-bala, cidades inteligentes e acumulou bilhões em reservas cambiais, tudo isso enquanto manteve censura à imprensa, restrições às liberdades individuais e vigilância digital em massa. Significa que o sucesso econômico foi acompanhado de violações de direitos humanos, trabalho análogo à escravidão em fábricas, repressão à minoria uigur e controle brutal sobre Hong Kong.

O “milagre chinês” não é simples. Ele é feito de sacrifícios humanos e decisões estratégicas de longo prazo, algo que muitos países ocidentais, reféns de eleições curtas e lobbies privados, não conseguem sustentar.

Shenzhen: vitrine da propaganda?

Shenzhen, a cidade onde “tudo acontece em duas horas”, é de fato uma joia tecnológica. Mas ela também é um laboratório de desigualdades sociais, gentrificação extrema e pressão urbana. O que os vídeos não mostram são os trabalhadores que vivem em dormitórios apertados para manter o ritmo frenético da inovação; a juventude saturada do sistema de metas e exaustão profissional; e os migrantes internos que não têm direito a serviços públicos básicos por conta do sistema de registro de residência (hukou).

O que os vídeos mostram é uma vitrine. Mas o que eles escondem é o custo social dessa vitrine.

A China jogou com suas próprias regras. Mas a que custo?

A China não seguiu as regras do livre mercado, da democracia liberal ou do socialismo tradicional. Ela criou o próprio tabuleiro e, até agora, vem vencendo o jogo. Mas esse “modelo híbrido” é sustentável a longo prazo? Isso ainda é uma incógnita. A desaceleração da economia chinesa nos últimos anos, os desafios demográficos, o aumento das tensões internacionais e a fuga de capitais são sinais de que nem tudo são flores no império vermelho high-tech.

E não dá pra romantizar isso.

A pergunta “se o socialismo deu errado” carrega uma armadilha: ela tenta transformar uma discussão histórica e política em provocação ideológica rasa. A China não é exemplo de socialismo nem de capitalismo puro. É exemplo de pragmatismo autoritário. De planejamento de Estado. De nacionalismo econômico. De controle social em troca de crescimento acelerado.

E o que a gente aprende com isso?

Que o mundo não se resume a “deu certo” ou “deu errado”. Que as potências não nascem do nada, nem se mantêm apenas com drones e palmas biométricas. E que é perigoso demais , e intelectualmente preguiçoso , romantizar ou demonizar qualquer modelo sem entender sua complexidade.

A China é uma potência, sim. Mas à sua maneira.
E a pergunta certa talvez não seja “se o socialismo deu errado”,
mas o que estamos dispostos a sacrificar para que algo “dê certo”?

Trago Fatos , Marília Ms.

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