Calaram a calçada: Quando a cidade vira feudo e o pedestre vira obstáculo

Na esquina da Hermes Fontes com a Nelson Hungria, em Aracaju, aconteceu o que já virou quase regra em muitas cidades brasileiras: cercaram a calçada .

Sim, a calçada. Aquele espaço público por onde se caminha, empurra-se um carrinho de bebê, passa-se com uma cadeira de rodas, corre-se atrás do tempo ou da vida.
Transformaram-na em propriedade privada com tapume, muro ou arrogância. Fecharam quase tudo, deixaram só um pedacinho, como quem joga um osso pro pedestre não morrer de fome , ou de descaso.

É inacreditável como a noção de espaço coletivo foi desintegrada pela lógica da posse. O que é público é tratado como estorvo por quem se vê acima da lei e da comunidade.
Ergue-se uma cerca onde deveria haver passagem, e quem reclama é “chato”, “dramático”, “contra o progresso”. Mas que progresso é esse que atropela o direito básico de ir e vir?
Que desenvolvimento é esse que sufoca a cidade para abrir caminho apenas para carros e construções?
Estamos urbanizando para quem, afinal?

A calçada virou trincheira: quem anda, perde

A calçada da esquina em questão é sintoma de algo maior. Não é só uma obstrução de concreto. É uma mensagem silenciosa, porém agressiva: “Aqui, o espaço é nosso. Você, pedestre, desvie. Se não couber, problema seu.”
Não há rampas. Não há aviso. Não há projeto inclusivo. Só a cerca. Só a ocupação hostil.
Zero acessibilidade.
Zero empatia.
Zero fiscalização — ou pior: tolerância seletiva da prefeitura.

E os que mais sofrem com isso são justamente os que menos têm voz: idosos, cadeirantes, mães com carrinho de bebê, pessoas com mobilidade reduzida, trabalhadores que usam o transporte público.
São obrigados a descer da calçada, andar na pista, arriscar a vida, porque alguém decidiu que o espaço público pode ser sequestrado pela iniciativa privada , ou pela simples falta de noção.

Cidades para carros, não para pessoas

A lógica que conduz esse tipo de ocupação urbana é antiga, mas ainda cruelmente atual: a cidade não é construída para as pessoas. Ela é moldada para os carros, para os empreendimentos, para os cercados de concreto onde o cidadão vira espectador e não protagonista.
O espaço urbano vira um emaranhado de “não pode”, “não entre”, “proibido”, “passe por outro lado”. E quem insiste em caminhar, é punido com o desrespeito.

Aracaju já foi chamada de cidade modelo em mobilidade, por sua planície e potencial cicloviário. Mas o que vemos, hoje, são ruas esburacadas, calçadas privatizadas, e obras que avançam sobre o direito coletivo com o silêncio conivente das autoridades.

Quando cercam a calçada, cercam também a democracia

Pode parecer exagero, mas não é. O espaço público é um dos últimos respiros de convivência democrática.
É nele que se cruzam ricos e pobres, estudantes e aposentados, gente indo trabalhar e gente voltando pra casa.
Cercar a calçada é cercar esse encontro.
É sinalizar que a cidade não pertence a todos, mas a alguns.
É uma arquitetura da segregação, do egoísmo, da cidade-feudo onde o pedestre é visto como incômodo.

A omissão institucional também é responsável

E onde está a Prefeitura de Aracaju? Onde está a Secretaria de Urbanismo? Onde está a fiscalização?
Por que se permite que um espaço essencial seja usurpado por grades e cercas?
Por que o que vale para o morador comum , não construir, não invadir calçada, manter a acessibilidade , não vale para grandes obras e empreendimentos?

O silêncio do poder público não é neutro. Ele é cúmplice.
A cada calçada cercada, a cada esquina bloqueada, o Estado confirma que há uma cidade para quem pode pagar e outra para quem precisa caminhar.

Conclusão: ou a cidade é de todos, ou não é cidade , é trincheira

O que fizeram na Hermes Fontes com a Nelson Hungria é só um caso. Mas é também o retrato fiel de como estamos falhando com o conceito mais básico de urbanidade: a convivência.
É hora de exigir fiscalização.
É hora de denunciar essas cercas físicas e simbólicas.
É hora de lembrar que uma cidade que não respeita a calçada, não respeita seus cidadãos.
E que onde só anda quem pode, ninguém realmente vive.

Trago fatos , Marília Ms 

Comentários

Matérias + vistas