Brincar de Casinha, Trabalhar Sem Parar: Como a Infância Rouba os Hobbies das Mulheres

 



Brincar de casinha. Brincar de boneca. Servir o chá. Cuidar do bebê. Simular uma rotina doméstica. Essas, quase sempre, foram as principais formas de brincar apresentadas às meninas durante a infância. Enquanto os meninos empilhavam blocos, escalavam árvores, simulavam aventuras de super-heróis ou improvisavam partidas de futebol, as meninas, de avental e rodinhas no cabelo, aprendiam , brincando , o que a sociedade esperava delas: cuidar, organizar, servir, estar à disposição do outro.

A infância deveria ser o terreno fértil da experimentação. Mas para meninas, ela já vem podada. E isso não é coincidência: é construção social. Desde cedo, nos é negado o direito de ousar. A liberdade de tentar e falhar. De arriscar. Somos apresentadas a um mundo delimitado, sem margem para aventura. Um mundo em que tudo é miniatura , menos o peso que carregamos.

Os brinquedos são pequenos, mas a mensagem é enorme. Brinque de cuidar, menina. Brinque de mãe. Brinque de lavar, de cozinhar, de esperar. Brinque de ser adulta. E quando crescer, aceite que sua vida deve seguir esse roteiro. Cuidar dos outros será sua responsabilidade, sua obrigação, seu destino.

Enquanto isso, os meninos são incentivados a explorar, construir, liderar, questionar. São estimulados a correr riscos , e por isso, mais tarde, sentem-se mais confiantes ao experimentar novos esportes, hobbies, profissões, sonhos. O resultado dessa bifurcação infantil é que, ainda hoje, muitas mulheres não sabem do que gostam. Não porque não tenham tempo , embora o tempo, de fato, nos seja roubado pela sobrecarga , mas porque não foram ensinadas a explorar o prazer, o desejo, o ócio criativo.

A fala da Tamara Klink, navegadora que desbravou o Atlântico, me atravessou profundamente: ela disse que teve o privilégio de escolher os perigos que quis correr, ao invés de sofrer com os perigos que lhe foram impostos. Que frase poderosa. Que realidade distante da maioria das mulheres.

Nós, por muito tempo, não escolhemos os riscos. Eles nos escolheram. Estávamos muito ocupadas tentando sobreviver. E a ausência de hobbies é apenas a superfície visível de uma ausência mais profunda: a de oportunidades de descoberta. Hobbies exigem tempo, sim. Mas exigem, acima de tudo, liberdade de imaginar possibilidades. E quando você passa a vida inteira ensaiando o papel de cuidadora, de responsável, de suporte emocional e prático para todo mundo, sobra pouco espaço interno para se perguntar: "O que eu gosto de fazer por mim?"

Quantas mulheres adultas conhecemos que se dizem "sem talento", "sem graça", "sem habilidade para nada"? Isso não é desinteresse. Isso é fruto de uma infância que não permitiu que elas descobrissem o que gostavam antes de serem engolidas por obrigações. Não é que as mulheres não gostem de desenhar, correr, pintar, nadar, surfar, colecionar selos, cozinhar por prazer (e não por obrigação), fazer escalada ou aprender a tocar um instrumento. É que muitas sequer tiveram a chance de tentar , ou, se tentaram, ouviram que “isso não era coisa de menina”.

E o impacto disso vai além do lazer: hobbies são uma forma de se reconectar com o próprio desejo, de reduzir o estresse, de fortalecer a autoestima, de criar novas redes de afeto. Eles nos devolvem algo que a sociedade constantemente nos nega: o direito de existir para além do cuidado com o outro.

Quando vemos uma mulher como Tamara atravessar o oceano em um veleiro, não estamos apenas vendo uma conquista esportiva. Estamos assistindo à subversão de uma estrutura que, por séculos, impediu mulheres de ir longe , literal e simbolicamente. Estamos assistindo alguém que ousou escolher seus perigos, e isso é um ato revolucionário.

Por isso, neste momento, meu desejo é simples e poderoso: que a gente possa escolher os riscos que queremos correr. Que tenhamos tempo, espaço e coragem para descobrir o que nos move. Que tenhamos o direito de errar, de brincar, de nos reinventar. Que sejamos mais que cuidadoras. Que sejamos protagonistas da nossa própria história , e que nela haja espaço para aventuras, descobertas, falhas e muita diversão.

Trago Fatos , Marília Ms.

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