A Voz do Silêncio: Quando só a política tem intérprete de Libras, o entretenimento exclui
Um grito surdo contra o descaso com a acessibilidade cultural
Um vídeo, um homem, uma esposa surda. Um momento aparentemente cotidiano: ela está assistindo à CPI das Bets na televisão. Mas o detalhe que deveria ser natural se torna extraordinário. Ele diz: “Mas beleza, ela está assistindo. Por quê? Porque tem um intérprete para ela.” E a pergunta que fica no ar, como uma batida seca na porta da hipocrisia nacional: por que só na política?
Por que é que a cultura surda, que consome televisão, que vive no mesmo tempo, que tem direito à mesma informação, só pode acompanhar plenamente programas políticos? Por que a presença de intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais) se resume, na maior parte das vezes, a janelas minúsculas em transmissões legislativas ou obrigatórias por lei eleitoral? Será que o surdo só tem direito à informação quando ela trata do que o governo quer divulgar? Quando o interesse é político, aí sim se lembram que há um Brasil inteiro que se comunica com as mãos?
O Brasil se gaba, com razão, de ter a Libras reconhecida oficialmente como meio de comunicação e expressão desde 2002, com a Lei nº 10.436. Mas de que adianta uma lei se ela não sai do papel? O acesso à informação é um direito constitucional. E o direito à cultura, ao entretenimento, à arte e à compreensão plena da linguagem audiovisual também é. Mas, na prática, o surdo vive num país onde a televisão fala para ele apenas quando o governo decide que ele precisa ouvir. Nos outros momentos , nas novelas, nos programas de auditório, nos reality shows, nos telejornais, nos esportes, na comédia , o silêncio é o que reina.
A acessibilidade comunicacional não é caridade. É direito. E mais: é cidadania. Não é sobre “incluir” os surdos como se eles fossem um apêndice da sociedade, mas sobre reconhecer que eles já fazem parte dela e merecem estar em igualdade de condições para se informar, se emocionar, se divertir e se posicionar. O vídeo desse rapaz, emocionado ao ver sua esposa finalmente entender o que está sendo discutido numa CPI, é uma denúncia crua da nossa negligência coletiva. Porque ela não está impressionada com a política. Ela está impressionada com o acesso. Com o fato de estar, finalmente, compreendendo.
E é exatamente isso que falta: compreensão. Compreensão por parte das emissoras, que têm todos os recursos para disponibilizar intérpretes, mas preferem ignorar. Compreensão por parte do governo, que legisla, mas não fiscaliza. Compreensão por parte da sociedade, que ainda trata o surdo como alguém "à parte". Como se o acesso à informação, à cultura e à diversão fosse um luxo, e não um direito. Como se o silêncio fosse a única linguagem que lhes cabe.
A presença de um intérprete de Libras em um programa não é apenas um gesto de inclusão. É uma afirmação de que aquele conteúdo é, de fato, para todos. Porque quando uma novela é exibida sem intérprete, o recado é claro: isso não é para você. Quando um documentário, um reality, um programa de humor vai ao ar sem tradução, o que se diz é: a sua experiência pode esperar. Mas não pode. A vida não espera. E a exclusão também não. Ela acontece todos os dias, em cada tela que não tem uma mão traduzindo, em cada programa que decide que Libras é "complicado" ou "inviável".
Os surdos são milhões. São pais, mães, filhos, artistas, estudantes, profissionais. Eles têm desejos, têm senso crítico, têm curiosidade, têm senso de humor. Eles merecem rir com os memes da TV, chorar com os dramas das novelas, vibrar com os gols do seu time. Eles também têm o direito de se decepcionar com políticos e, ao mesmo tempo, se divertir com o Faustão. Porque ser cidadão é muito mais do que votar. É viver plenamente no seu tempo.
A política, ironicamente, é o único lugar onde a acessibilidade ainda tenta existir na TV , e isso porque é obrigada por lei. Mas será que é só isso que importa? Será que a TV aberta brasileira, esse meio que ainda é o principal veículo de entretenimento e informação para milhões, continuará se dando ao luxo de excluir uma parte significativa da sua audiência? Será que as emissoras, públicas e privadas, vão continuar tratando Libras como uma decoração institucional?
Enquanto isso, o silêncio continua sendo imposto. E não pela surdez, mas pela omissão.
Que o vídeo desse homem e sua esposa sirva como manifesto. Que a imagem daquela mulher, surpresa e emocionada por simplesmente entender, sirva como um espelho da vergonha nacional: a vergonha de uma sociedade que ainda precisa ser lembrada de que o direito à cultura é para todos. A televisão precisa deixar de ser um canal seletivo e se tornar, de fato, um canal de comunicação. Porque quando a linguagem é acessível, a informação deixa de ser privilégio.
E, por favor, que o surdo também possa assistir ao “Domingão”, rir com o “Porta dos Fundos”, acompanhar o “Big Brother”, se emocionar com o “Profissão Repórter” e se encantar com a “Avenida Brasil” , com intérprete do começo ao fim. Porque não é só de política que vive a cidadania. Ela vive também de cultura. Vive de sentir. Vive de entender. Vive de pertencer.
Trago Fatos , Marília Ms.
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