A máquina de lavar e a arquitetura do preconceito: o que o espaço da casa revela sobre o espaço social


Você já parou para pensar por que a máquina de lavar fica sempre “ao lado da cozinha”?
Parece apenas uma decisão prática, um detalhe de projeto, uma convenção cultural. Mas não é. É uma herança silenciosa de um passado desigual que ainda estrutura a forma como desenhamos, construímos e, mais grave ainda, naturalizamos nossos espaços.

No Brasil, a cozinha foi, por décadas , e ainda é, em muitos lares , o espaço do invisível. O território da “área de serviço”. Mas por que esse nome?
Porque era ali que os serviçais , geralmente mulheres negras, pobres, marginalizadas , ficavam. Era ali que se cozinhava, lavava, limpava, cuidava dos filhos dos outros.
Era ali, fora da “área social” da casa, que se erguia a espinha dorsal de uma domesticidade sustentada por mãos que a elite insistia em não ver.

Por isso, a tal "área de serviço" não é apenas um nome. É um vestígio arquitetônico de uma estrutura escravocrata mal dissolvida, que ainda ensina , inclusive em cursos de arquitetura e design de interiores , que a cozinha deve ser “à parte”, que o lugar da máquina de lavar é ao lado do fogão, que o banheiro não serve para isso.

Só que o mundo já andou.
Na Europa, é comum encontrar a máquina de lavar no banheiro, ou até mesmo embutida nos closets e nos quartos. Na Ásia, o banheiro abriga chuveiro, máquina e tanque num só espaço, com praticidade e inteligência. Nos Estados Unidos, é comum vê-las nos corredores, em armários, no lavabo. E a pergunta óbvia que surge é: por que, afinal, tiramos a roupa no banheiro… e levamos para lavar na cozinha?

Parece contraditório, mas é sintomático.
No Brasil, a máquina de lavar roupa ao lado da cozinha é um corpo estranho — uma eletrodoméstica de limpeza situada onde se prepara comida.
E isso só faz sentido se entendermos a lógica histórica que separava os "espaços nobres" da casa dos "espaços de serviço". A cozinha não era considerada um espaço de convívio, mas de trabalho braçal, de suor, de submissão.
E, convenhamos, em muitas casas ainda é assim.
A diarista entra pela porta dos fundos. A cozinha continua separada da sala. A lavanderia ainda é escondida, mesmo em apartamentos modernos.
Tudo isso perpetua uma ideia de que existe lugar certo para cada pessoa e cada função , como se a arquitetura fosse um manual silencioso de castas.

Enquanto continuarmos ensinando isso nas faculdades, continuaremos desenhando um país desigual, onde até o espaço da máquina de lavar denuncia a estrutura social.
Ela está ali, quase invisível, ao lado do fogão, mas carrega uma história pesada: de racismo, de exploração, de machismo e de classe.

Rever esse modelo é muito mais do que uma questão de design ou funcionalidade.
É sobre justiça, sobre olhar com outros olhos para o cotidiano.
É sobre construir casas que acolham todos os corpos, todos os gestos, todos os usos.
É sobre parar de repetir, sem crítica, os padrões de um passado que já deveria ter sido superado.

E se você acha que isso é detalhe…
Lembre-se: a forma como vivemos molda a forma como pensamos.
E vice-versa.

Trago Fatos, Marília Ms.

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