A geração que teve que chamar escassez de liberdade




Estamos realmente escolhendo viver com menos? Ou estamos sendo forçados , a cada escolha, a cada renúncia, a cada “opção” travestida de liberdade, a nos encolher para caber em um mundo que já não nos pertence?

É estranho pensar que a nossa geração, os tão falados millennials, que cresceram ouvindo que podiam ser tudo o que quisessem, tiveram que aprender a viver com quase nada. A promessa de futuro virou pó após a crise de 2008 , aquela rachadura invisível que partiu nossos sonhos em duas metades: uma ainda idealista, e outra exausta, tentando pagar o aluguel. A partir dali, a falta virou estética, e a renúncia, moda. A mídia chamou de lifestyle, mas era apenas sobrevivência. A gente, espremido entre boletos e burnout, virou símbolo de um “novo desapego”. Uma geração que prefere experiências a bens. Uma geração que “escolheu” viver com menos. Mas será que foi mesmo escolha?

Vivemos em caixas de sapato. Em apartamentos de 30 metros quadrados com o nome gourmet. Sem paredes, sem espaço, sem silêncio. Amontoados. Aconchegados à força em um modelo de vida que nos reduz. O tal “minimalismo millennial” nunca foi sobre viver melhor com menos. Foi sobre fazer caber a vida inteira dentro de um quarto alugado. Foi sobre abandonar planos, adiar filhos, abrir mão de conforto, e chamar isso de maturidade.

Mas o ser humano precisa de espaço. Precisa respirar. Precisa de uma janela aberta para a vida , e não só para ver o vizinho do prédio da frente pendurar a roupa. O que adoece não é viver com menos objetos, mas com menos dignidade. Menos direitos. Menos perspectiva. A vida que nos venderam como leve e descomplicada é, na verdade, uma existência comprimida. Um minimalismo que nos foi empurrado goela abaixo e que, de tão romantizado, parece até escolha.

E o problema não é optar por viver com menos. O problema é quando isso vira regra, quando a precariedade é embalada em estética neutra de Instagram e vendida como libertação. Como se abdicar de tudo fosse um sinal de evolução. Como se estar sempre no limite fosse normal. Como se fosse bonito se contentar com pouco , enquanto uma minoria vive com tanto, sem nunca precisar escolher entre o Uber ou o almoço.

Esses dias, um consultor financeiro ensinava como economizar 500 euros por mês. Cancelar streamings. Fazer comida em casa. Evitar transporte pago. Abrir mão de tudo que traz algum alívio no cotidiano. Até aí, tudo bem. O que incomodou foi o final: “O que você está disposto a sacrificar pelo seu futuro?” E a pergunta que não se cala é: por que tudo em nossa vida precisa ser sacrificado? Por que viver bem agora virou luxo? Por que o conforto foi sequestrado e transformado em privilégio?

Sacrifício constante não é nobre. É desumano. É adoecedor. É o tipo de narrativa que sustenta um sistema apodrecido que se alimenta da nossa culpa. Que nos fez acreditar que o problema somos nós. Que ainda não fizemos o suficiente. Que precisamos nos sacrificar mais. Trabalhar mais. Abrir mão de mais. Sempre mais. Até sumir.

Quem lucra com isso? Quem ganha quando aceitamos viver uma vida inteira em função do amanhã? Quando nos conformamos com o mínimo, e ainda agradecemos?

Não quero viver à base de renúncia. Não quero medir o feijão no mercado. Nem cortar o cafezinho para tentar caber no orçamento de um mundo que nunca foi feito pra mim. Não quero esperar envelhecer pra viver — se é que chegarei até lá com saúde mental. E principalmente, não quero me encolher para realizar o sonho de outros. Porque foi isso que nos ensinaram desde sempre: a caber. A não desejar demais. A ser grato, mesmo quando falta tudo. A aceitar menos. A perder a cor pra agradar o mundo cinza.

Mas eu me recuso. Me recuso a viver num vaso apertado, sem terra, sem raiz, sem flor. Me recuso a aceitar que liberdade seja sinônimo de sacrifício eterno. Me recuso a chamar opressão de escolha. Assim como as papoulas, eu nasci pra florescer em campo aberto. E o que quero , o que todos deveríamos poder querer , é espaço. Pra crescer. Pra respirar. Pra viver com dignidade, e não apenas com o suficiente.

Minimalismo pode ser bonito, sim. Quando é escolha. Quando vem da abundância interna e não da escassez imposta. Quando liberta, e não aprisiona. Mas quando é só a maquiagem de uma crise social profunda, ele vira farsa. Vira armadilha. Vira prisão com paredes bege e móveis multifuncionais.

A gente merece mais. E querer mais não é ingratidão. É sobrevivência com dignidade.

Trago fatos, Marília Ms .

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