A gamificação do ódio no submundo das redes: como o Discord virou campo fértil para o recrutamento misógino e LGBTfóbico entre jovens


No subsolo digital das redes sociais, onde a moderação é escassa, a linguagem é cifrada e a comunidade é construída na base da exclusão, cresce silenciosamente um fenômeno perigoso: a gamificação do ódio. No Discord, uma plataforma inicialmente criada para conectar jogadores e comunidades geeks, jovens estão sendo recrutados para grupos que não apenas toleram o preconceito, mas o transformam em cultura, jogo e pertencimento.

São servidores fechados, com acesso limitado por convites e "provas de lealdade". Neles, a misoginia e a LGBTfobia não são tratadas como desvios éticos, mas como troféus. Cada comentário ofensivo, piada desumanizante ou incitação à violência contra mulheres e pessoas LGBTQIA+ é visto como um ponto a mais no placar de aceitação. O que deveria ser um espaço de lazer digital vira uma arena para o cultivo de extremismos , um RPG social no qual os vilões não são monstros fictícios, mas qualquer um que defenda a diversidade e os direitos humanos.

Pontuar o ódio: quando ofender se torna missão

Nos bastidores desses grupos, tudo é estruturado como um jogo. Existe hierarquia: há "mestres" que criam regras, "moderadores" que organizam os desafios e iniciantes que precisam provar sua lealdade à comunidade. A lógica é clara: quem mais propaga o discurso de ódio sobe de nível. Quem questiona, é banido. O que antes eram fóruns informais se transformaram em verdadeiros campos de adestramento ideológico, onde a masculinidade tóxica é a base de sustentação e a empatia é punida como fraqueza.

A gamificação é a chave da eficácia desse sistema. Ao transformar atos repulsivos em conquistas simbólicas, esses grupos desumanizam o outro e blindam seus membros da responsabilidade ética. É como se, dentro daqueles servidores, a moral estivesse suspensa e valesse qualquer coisa pela sensação de pertencimento. O jovem que se sente deslocado no mundo real encontra ali não só um espaço de acolhimento , ainda que perverso –, mas também um manual de como ser "forte", "respeitado" e "temido".

A estética da ironia e o escudo do humor

Um dos mecanismos mais sofisticados usados para camuflar o ódio nesses espaços é o humor. Muitas mensagens são disfarçadas de memes, piadas ou “brincadeiras”. Essa estética da ironia permite que os conteúdos sejam compartilhados com uma falsa leveza, enquanto normalizam discursos violentos. “Não é sério”, dizem. Mas é. E muito.

O humor se tornou o escudo da intolerância, funcionando como um antídoto moral para jovens que não querem se ver como algozes. Rir de uma minoria vira um rito de passagem. Compartilhar vídeos de humilhação pública, piadas transfóbicas ou “testes de masculinidade” é recompensado com status digital. E, quanto mais insensível for o conteúdo, maior o aplauso.

O recrutamento e a manipulação emocional

É preciso compreender que esses jovens não chegam por acaso a esses servidores. Há um trabalho sistemático de recrutamento. Perfis vulneráveis , principalmente meninos brancos, socialmente isolados ou que sofrem bullying , são identificados, acolhidos e treinados. Primeiramente com mensagens sutis de “liberdade de expressão” e “politicamente incorreto”, depois com piadas ofensivas, e por fim, com discursos abertamente violentos.

A tática é gradual, quase terapêutica: o jovem que não se sente ouvido em casa ou na escola é ouvido ali. Recebe atenção, elogios, tutoria. E quando percebe, já está em um ciclo de reforço onde agredir se torna sinônimo de ser aceito. O ódio, então, não é apresentado como destruição, mas como identidade.

Plataformas cúmplices ou negligentes?

O Discord, assim como outras redes, tem termos de uso que proíbem discursos de ódio. No entanto, a estrutura da plataforma , que privilegia grupos fechados, sem indexação pública e com pouca supervisão humana , é ideal para que comunidades extremistas prosperem longe dos olhos da moderação.

E não é só no Discord. Essas redes subterrâneas muitas vezes atuam em sincronia com outras plataformas: Reddit, 4chan, Telegram, e até TikTok e Instagram, que servem como vitrines mais abertas para "recrutar" novos membros. Uma piada viral aqui, um link com convite acolá, e o ciclo continua. Há uma cultura de conivência e negligência que precisa ser urgentemente confrontada.

As consequências fora das telas

É ingênuo pensar que o que acontece nessas redes fica restrito ao mundo digital. Jovens que crescem alimentando o ódio se tornam adultos que reproduzem esse ódio nas universidades, nos ambientes de trabalho, na política, na violência doméstica e nas urnas. O massacre em Realengo (2011), os atentados em escolas em 2022 e 2023, e a ascensão de políticos com discursos ultraconservadores são exemplos claros de como esse submundo digital se infiltra no tecido social.

A violência não nasce do nada. Ela é cultivada, alimentada e performada – e o Discord, neste caso, tem servido como uma estufa.

O que podemos fazer?

Combater a gamificação do ódio é urgente – e possível. Requer uma ação combinada entre plataformas (com mecanismos mais eficazes de denúncia e rastreamento), escolas (com educação digital crítica e empática), famílias (com atenção às mudanças de comportamento dos filhos), mídia (que denuncie e não normalize), e políticas públicas (que tratem crimes digitais com a seriedade devida).

Mas, acima de tudo, exige que entendamos a armadilha emocional e cultural por trás do discurso de ódio. O problema não são só palavras ofensivas. É a construção de um universo simbólico onde o preconceito se torna moeda de troca, identidade, brincadeira, refúgio. E a única forma de desarmar esse ciclo é oferecendo, do lado de cá, pertencimento, escuta e verdade.

Porque a luta contra o ódio não se faz apenas com leis e moderação. Ela começa quando criamos redes humanas e digitais , onde ser diferente não seja motivo de exílio, mas de celebração.

Trago Fatos , Marília Ms.


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