A feijoada não veio dos restos que a Casa Grande deixava para a Senzala
É curioso como algumas histórias mal contadas ganham uma força extraordinária nas redes sociais, como se repetir uma mentira com indignação a tornasse verdadeira. Uma dessas histórias , que já virou até “verdade popular” , é a de que a feijoada nasceu dos restos que a Casa Grande deixava para os escravizados na senzala. A romantização do sofrimento e a falsa ressignificação da dor não deveriam ser motivo de orgulho, mas de reflexão crítica. E é justamente isso que falta quando essa narrativa se espalha sem freios: reflexão histórica.
A origem da feijoada, como qualquer prato símbolo de uma nação mestiça, é complexa, coletiva e múltipla. Não cabe em um post de Instagram nem numa explicação rasa e cheia de boas intenções. E muito menos cabe no discurso simplista de que “os pretos fizeram da miséria uma iguaria e superaram tudo com criatividade”. Essa visão é, além de equivocada, profundamente desonesta com a brutalidade da escravidão brasileira.
Para começo de conversa, a ideia de que a Casa Grande jogava fora partes do porco como orelha, rabo e pé, e que a Senzala catava esses “restos” para fazer sua comida é totalmente incompatível com o contexto histórico. Essas partes sempre foram consumidas pelos europeus. Os portugueses, por exemplo, têm receitas centenárias com essas mesmas carnes, como o cozido à portuguesa ou o cassoulet francês (primo distante da nossa feijoada). Ou seja, não eram restos. Eram carnes consideradas comuns e saborosas.
A técnica de cozimento longo, de misturar carnes curadas com feijão, também não nasceu no Brasil. O que nasceu aqui foi o encontro entre técnicas europeias, ingredientes indígenas e a mão negra , a mão das mulheres negras escravizadas, que eram quem cozinhava diariamente nas casas dos senhores brancos.
Essas mulheres não estavam na senzala transformando lixo em luxo. Elas estavam na cozinha da Casa Grande, preparando os alimentos da elite colonial com o conhecimento culinário herdado de suas mães, avós e dos povos com quem seus ancestrais partilharam saberes no continente africano. Elas adaptaram receitas, criaram novos modos de temperar, de servir, de preservar. Elas fizeram da cozinha um espaço de resistência simbólica , não porque tinham esse “luxo”, mas porque era o que lhes restava diante de uma realidade que as impedia de serem reconhecidas sequer como gente.
A feijoada que conhecemos hoje , com feijão preto, carnes de porco, arroz branco, farofa, couve refogada e laranja , é uma construção brasileira. Uma amálgama cultural moldada por séculos. Mas associar sua origem diretamente à miséria da senzala é perpetuar a falsa ideia de que escravizados conseguiam se alimentar bem, mesmo sendo tratados como propriedade. Isso é um insulto à memória dos que viveram sob o chicote e o açoite. A alimentação do escravizado, na realidade, era baseada em mingaus ralos, angu de farinha sem sal, sobras escassas. Carne? Só em datas muito específicas ou quando o “senhor” queria “premiar” seu trabalhador por um bom desempenho na lavoura.
Dizer que a feijoada veio da senzala é, portanto, uma tentativa rasa e quase infantil de encontrar beleza em um dos sistemas mais brutais e violentos que a humanidade já produziu. É querer tapar o sol da escravidão com a peneira da culinária, apagando o sofrimento histórico em nome de uma fábula que possa ser facilmente digerida no almoço de domingo.
E tem mais: quando se apaga a herança indígena da feijoada , o uso do feijão, da farinha, dos modos de cultivo e preparo , se repete mais uma vez o silenciamento sistemático de um povo que também foi escravizado, massacrado e expropriado neste território. O Brasil é feito de apagamentos. A memória do indígena e do negro é constantemente distorcida para caber nas lógicas do orgulho nacional. E é nesse contexto que a feijoada se transforma em símbolo do “jeitinho brasileiro”, enquanto sua história verdadeira é ignorada.
Ainda assim, não se pode negar: a feijoada é, sim, um prato com mão negra. Porque foram mãos negras que mexeram a panela. Foram corpos negros que carregaram os sacos de feijão, limparam o porco, cortaram os ingredientes, prepararam a farofa, refogaram a couve. Foram mulheres negras que fizeram esse alimento chegar à mesa da elite branca e, muito tempo depois, à mesa dos brasileiros de todas as classes. É uma receita ancestral , não porque veio da senzala, mas porque foi moldada por mãos que resistiram mesmo quando tudo ao redor era opressão.
Neste 13 de maio, quando muitos ainda comemoram a “abolição” como se fosse libertação real, é preciso lembrar que a liberdade veio sem terra, sem escola, sem salário e sem justiça. Que os pretos velhos homenageados nos terreiros com feijoada, café e bolo de milho não são símbolos de superação, mas testemunhas espirituais da resistência contra um sistema cruel que continua se atualizando.
Portanto, da próxima vez que alguém repetir essa história de que a feijoada veio da senzala como uma iguaria feita de restos, lembre-se: não compartilhe mitos que romantizam a dor. Honre a memória de quem morreu de fome, de quem cozinhou para o senhor, mas não podia se alimentar. Honre com verdade. Porque a história, assim como a feijoada, merece ser servida com sustância , e com respeito.
Trago Fatos , Marília Ms.
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