A falsa maturidade e o preço da incoerência social
Vivemos numa sociedade que gosta de rotular, controlar e selecionar o que convém chamar de “maturidade”. É um conceito jogado de um lado para o outro, manipulado para caber em discursos seletivos e convenientes. Para dirigir, você precisa ter 18 anos. Para votar, também. Para comprar bebida alcoólica, nem se fala. Para fazer uma tatuagem, só com autorização dos pais. Mas, surpreendentemente , e perigosamente , para consentir em uma relação sexual com um adulto, basta ter 14.
O diálogo que escancara essa realidade não é uma mera dramatização. É o retrato cruel de como o Estado e a sociedade tratam a adolescência, principalmente a adolescência feminina. De um lado, se diz que um adolescente de 15 anos não tem capacidade emocional e psicológica para decidir sobre uma tatuagem , um desenho na pele. Do outro, esse mesmo adolescente é considerado maduro o suficiente para lidar com o peso de uma relação sexual com alguém muito mais velho, com toda a carga emocional, afetiva e psicológica que isso envolve. Isso não é apenas incoerente. É cruel.
A idade do consentimento no Brasil é 14 anos. Ou seja, a partir dessa idade, o adolescente é legalmente capaz de dizer “sim” ao sexo. Mas que tipo de consentimento é esse? Será que é um consentimento livre e consciente? Será que uma menina de 14, 15 anos, que ainda está tentando entender seu corpo, seus sentimentos, seu lugar no mundo, consegue avaliar os impactos emocionais, físicos e até legais de uma relação com um adulto?
É importante entender que o consentimento não é apenas um “sim”. Ele deve ser dado com consciência, sem coerção, sem manipulação, sem desequilíbrio de poder. E relações entre adolescentes e adultos, na esmagadora maioria dos casos, carregam um forte desequilíbrio de poder. Há desigualdade emocional, social, psicológica. Há romantização do abuso, há glamourização de comportamentos predatórios , especialmente quando a sociedade insiste em olhar meninas como "mais maduras para a idade", como se crescer precocemente fosse justificativa para lhes arrancar a infância.
Enquanto isso, se essa mesma adolescente engravidar, o sistema vira as costas. Ela não pode adotar uma criança, porque não tem estrutura. Mas ela é obrigada a carregar uma gestação que não tem condições emocionais, físicas e nem sociais de sustentar. Aborto? Criminalizado. Apoio psicológico? Escasso. Acolhimento? Raro. Tudo isso porque, aos olhos da lei, ela pode consentir. Mas aos olhos da realidade, ela está sozinha.
A seletividade na aplicação da maturidade é uma estratégia de controle. Controla-se o corpo das adolescentes com leis que impõem limites sobre o que podem consumir, vestir, tatuar ou experimentar. Mas se omite quando o assunto é proteção real contra relações abusivas travestidas de consensuais. Quando não é conveniente intervir , como no caso de uma relação entre um adulto e uma adolescente , o sistema se cala. Se isenta. E esse silêncio tem consequências devastadoras.
Precisamos urgentemente repensar o que chamamos de consentimento e maturidade no Brasil. Consentimento sem estrutura emocional é violência. Maturidade forçada por abandono é trauma. E enquanto continuarmos selecionando quais escolhas adolescentes podem fazer com base em conveniências morais ou interesses adultos, estaremos naturalizando o abuso, negligenciando a infância e perpetuando ciclos de sofrimento.
Não se trata apenas de mudar a idade do consentimento. Trata-se de reconhecer que não há como exigir responsabilidade de quem ainda nem teve tempo de se desenvolver plenamente. Trata-se de oferecer proteção de verdade. De parar de culpabilizar meninas por abusos que sofrem. De entender que maturidade emocional não pode ser medida por uma data no calendário, mas por uma rede de apoio, educação sexual de qualidade, escuta ativa e políticas públicas reais.
Chega de dizer que elas “sabem o que estão fazendo” enquanto ainda têm medo do escuro. Chega de exigir adultização precoce enquanto lhes negam a liberdade de errar, de crescer e de ser apenas criança. Chega de hipocrisia legal que protege corpos quando convém e os abandona quando é mais necessário.
Ou a sociedade decide proteger de verdade as suas adolescentes, ou continuará sendo cúmplice de cada lágrima que ela derramar sozinha.
Trago Fatos , Marília Ms.
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