Quando os meninos caem no ódio, e as meninas caem no espelho



Vivemos em uma era em que os algoritmos definem trajetórias, os likes determinam valores e as crises existenciais são moldadas a partir de padrões inalcançáveis.

 Quando nos perguntamos para onde vão os meninos que caem em fóruns misóginos, red pills, masculinistas e comunidades de ódio, a resposta aparece logo: caem em discursos inflamados de dominação, ressentimento e poder. Mas quando a pergunta se inverte , e as meninas, para onde vão? O silêncio pesa. Porque as meninas não caem em fóruns. Elas caem no espelho. E essa queda é tão violenta quanto qualquer discurso de ódio, só que acontece em silêncio, disfarçada de autocuidado, lifestyle e empoderamento.

Enquanto os meninos são doutrinados a dominar o mundo, as meninas são ensinadas a dominar a si mesmas. 

E esse domínio é cruel: exige que controlem cada centímetro do corpo, cada fio de cabelo, cada traço da personalidade. 

Voz, desejo, comportamento, ambição , tudo deve ser moldado, calibrado, contido. A menina ideal se tornou um projeto de consumo: desejável, domesticada e esteticamente perfeita.

O espelho, nesse cenário, não é mais um objeto. É uma arena de batalha. E ela começa cedo. Transtornos alimentares, automutilação, crises de ansiedade, culto à magreza, à perfeição, ao “estilo de vida saudável” que, na verdade, é só um eufemismo para controle obsessivo. As meninas não estão se radicalizando em discursos políticos. 

Estão se autoaniquilando em nome de uma feminilidade vendida em potes de cremes, filtros de Instagram e vídeos de skincare. O patriarcado nem precisa mais gritar. Porque elas já se vigiam sozinhas. E vigiam umas às outras.

No Tumblr dos anos 2000, a estética da anorexia e a glamourização da dor já floresciam entre imagens de meninas pálidas, costelas saltadas e olhos tristes. Agora, o palco mudou , Instagram, TikTok, Pinterest , mas o roteiro é o mesmo. 

Clean Girl. Messy Girl. That Girl. Soft Girl. Glam Mommy. Cada mês uma nova persona, uma nova embalagem para o mesmo produto: a mulher autossuficiente, bonita, produtiva, saudável, silenciosa. Uma boneca que performa feminilidade enquanto luta diariamente contra si mesma.

E tudo isso vem maquiado de liberdade. “Se arrume para você mesma.” “Faça o que te faz feliz.” “Empodere-se.” Mas que liberdade é essa que exige uma barriga negativa, uma rinoplastia, um botox preventivo aos 20 anos? Que independência é essa que custa um salário inteiro em procedimentos estéticos e crises de identidade? Estamos falando de uma nova forma de dominação: sutil, sorridente, com cheiro de loção corporal. Um controle que foi internalizado e transformado em autopoliciamento. A mulher contemporânea não precisa mais ser oprimida de fora. Ela mesma se vigia. E se pune.

O sistema é tão engenhoso que transforma cada insegurança em produto. O capitalismo depende de mulheres eternamente insatisfeitas, de meninas que acreditam que a próxima compra vai preencher o vazio, que o próximo retoque vai resolver a dor. Mas a dor, essa, não vem de fora. Ela é ensinada, injetada e performada. E se disfarça de “autoamor” enquanto cobra perfeição.

Os meninos caem no ódio, e as meninas caem no auto-ódio. Duas faces da mesma moeda. Eles aprendem a nos odiar. Nós, a nos odiar também. Um aprende que é forte ao dominar, o outro que só será amada se se controlar. Ambos adoecem, mas por caminhos diferentes. E ambos servem ao mesmo sistema: um que lucra com a guerra entre gêneros e com a nossa constante inadequação.

A filósofa Sandra Libard já denunciava: o poder sobre os corpos femininos não é apenas físico, ele é psicológico, invisível, sutil. E por isso, não se trata apenas de opressão. É exploração. As meninas são ensinadas a se odiarem em nome do amor próprio. Isso não é liberdade. É um projeto de controle disfarçado de escolha.

A transformação que precisamos não é de filtro. É estrutural. É ensinar as meninas a se amarem antes que aprendam a se detestar. É ensinar os meninos que masculinidade não precisa ser sinônimo de dominação. Que amar, cuidar, se vulnerabilizar, não é fraqueza. É revolução. Porque só quando rompemos com essa lógica perversa , que nos coloca como inimigos de nós mesmos e dos outros , é que podemos imaginar uma sociedade verdadeiramente livre.

Essa transformação começa em casa, nas escolas, nas redes, nas conversas. Ela começa ao parar de elogiar a menina que “se cuida tanto” e começar a perguntar se ela está bem. Ao parar de ridicularizar o menino sensível e começar a incentivá-lo a se expressar. Ao abandonar os discursos prontos de empoderamento para assumir a complexidade que é ser mulher num mundo que lucra com a sua dor.

A luta contra o machismo não é proteger meninas e punir meninos. É libertar todos de um sistema que nos ensina que só somos válidos se odiarmos a nós mesmos ou aos outros. Ensinar meninas a se amarem e meninos a não odiarem é um ato revolucionário. E urgente.

Porque ninguém deveria crescer achando que seu corpo é um problema a ser consertado.

E ninguém deveria ser ensinado a odiar para se sentir forte.

Trago Fatos , Marília Ms.

Comentários

Matérias + vistas