Uma Utopia para Uns, um Pesadelo para Muitos
A princípio, a ideia de ganhar um dia de folga a cada três dias de trabalho pode soar como um privilégio distante da realidade da grande maioria dos brasileiros. Entretanto, para juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça de Sergipe, essa condição não apenas é real, como também se transforma em uma oportunidade de aumentar significativamente seus vencimentos, ao ponto de superar o teto salarial previsto para o funcionalismo público. Essa realidade, embasada num benefício instituído em 2023 , a licença compensatória , revela, de forma contundente, uma profunda desigualdade de tratamento dentro do próprio setor público.
Enquanto a maioria dos trabalhadores luta diariamente por condições dignas de trabalho, com jornadas exaustivas, baixos salários e a constante busca pelo fim de escalas desgastantes (como a 6×1), magistrados de Sergipe desfrutam de uma regra que lhes garante um dia de folga a cada três dias laborados. Essa folga, que pode ser acumulada e, caso não seja usufruída, vendida de volta à administração, gera uma renda extra que pode variar entre R$ 11 mil e R$ 13 mil mensais.Além disso, esses profissionais contam com 60 dias de férias anuais , um benefício que, por si só, já se apresenta como um luxo quando comparado à realidade dos demais servidores públicos e, principalmente, à população em geral
Para muitos cidadãos, a dificuldade de conseguir um emprego formal, com carteira assinada e remuneração que permita a subsistência básica, torna qualquer discussão sobre folgas remuneradas algo absolutamente inalcançável. Em meio à insegurança e à luta por direitos laborais, a ideia de receber uma compensação financeira generosa por um benefício que, na prática, encurta a jornada de trabalho desses magistrados parece , no mínimo , paradoxal.
O levantamento do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário de Sergipe (Sindijus) aponta que essa prática custou ao Tribunal de Justiça cerca de R$ 20 milhões a mais em 2024. Em um cenário onde os recursos públicos são frequentemente insuficientes para financiar programas sociais que beneficiam milhões , como saúde, educação e assistência social , o dispêndio com privilégios para uma pequena elite do Judiciário torna-se um símbolo doloroso da disparidade de prioridades na gestão dos recursos do Estado.
O que se observa é um reflexo de uma política de valorização dos cargos de alta relevância institucional, mas que, ao mesmo tempo, contrasta de maneira gritante com o tratamento dispensado à maioria dos trabalhadores do setor público e, sobretudo, à realidade dos cidadãos que dependem de programas sociais para terem acesso a uma vida digna. Em vez de direcionar esforços para melhorar a remuneração e as condições de trabalho daqueles que enfrentam jornadas exaustivas e precarizadas, o Estado opta por manter e até ampliar benefícios que garantem uma vida quase utópica para um grupo restrito de magistrados.
O que torna essa situação ainda mais revoltante é o fato de que o debate público e midiático raramente se volta para questionar esses privilégios. Enquanto se discute intensamente a necessidade de cortar ou reduzir investimentos em programas sociais ,que são a única rede de proteção para milhões de brasileiros , o foco recai sobre a suposta necessidade de ajuste fiscal que, muitas vezes, serve de justificativa para a contenção de recursos destinados a áreas fundamentais. Essa escolha de pauta revela uma inversão de prioridades: em vez de combater a desigualdade e promover políticas que atendam às necessidades da população mais vulnerável, o debate se restringe a medidas que, direta ou indiretamente, perpetuam um sistema de privilégios concentrados na elite do poder público.
É quase irônico que, em um país onde a luta por um salário mínimo digno, melhores condições de trabalho e a ampliação dos direitos sociais é constante, o debate se limite a discutir cortes em programas que já não alcançam a todos. Enquanto a população sofre com a escassez de recursos para saúde, educação e moradia, o setor judicial celebra benefícios que parecem ser fruto de um mundo à parte , um universo onde o descanso remunerado e as folgas acumuladas são tratadas como direitos inalienáveis, independentemente do desempenho ou da necessidade social.
Essa disparidade levanta questões fundamentais sobre os princípios que devem reger a administração pública e o próprio Estado Democrático de Direito. Em uma sociedade que se propõe a garantir a igualdade de oportunidades, a manutenção de benefícios tão generosos para uma minoria, em detrimento de investimentos que poderiam transformar a vida da maioria, é não só injusta como moralmente questionável. O caso dos magistrados de Sergipe é emblemático ao expor a hipocrisia de um sistema que se diz comprometido com a justiça, mas que, na prática, beneficia aqueles que já ocupam posições privilegiadas, enquanto deixa de lado as necessidades básicas da população.
Ao mesmo tempo, essa realidade evidencia a necessidade de uma reforma profunda na gestão dos recursos públicos, que passe por uma revisão das prioridades de gastos do Estado. É imperativo que o debate político e social se amplie para incluir discussões sobre equidade salarial, condições de trabalho e, sobretudo, a alocação de recursos em áreas que possam realmente promover a justiça social e a melhoria da qualidade de vida dos brasileiros.
O benefício que garante um dia de folga a cada três dias de trabalho para juízes e desembargadores, e que possibilita a venda desses dias para complementar seus salários, é um exemplo claro de como privilégios excessivos podem coexistir com a pobreza e a precariedade de milhões de cidadãos. Essa prática, longe de ser uma mera questão administrativa, simboliza uma lógica de exclusão que, intencionalmente ou não, reforça a desigualdade no país. Enquanto uma minoria desfruta de uma “vida utópica”, a maioria luta por condições básicas de existência.
Portanto, é urgente que a sociedade repense as prioridades do Estado e exija uma redistribuição mais justa dos recursos públicos , onde o combate à desigualdade social e a promoção de direitos fundamentais tenham prioridade absoluta. Apenas assim será possível construir um país mais equitativo e verdadeiramente justo, onde os benefícios de um trabalho decente e de políticas sociais eficazes sejam uma realidade para todos, e não apenas para uma pequena elite privilegiada.
Trago fatos, Marília Ms.
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