Simpatia não é convite

 


Ser mulher no mundo é um jogo de equilíbrio entre gentileza e autopreservação. Não dá para ser simpática demais com qualquer homem na rua. Repare que eu disse simpática, não educada. Dá para dizer "boa tarde", "obrigada", "por favor", sem precisar abrir um sorriso largo ou demonstrar afeto desnecessário. Porque a experiência ensina, cedo ou tarde, que simpatia demais é sempre mal interpretada.

Eu costumava pensar diferente. Achava que ser simpática com homens que estavam numa posição de me servir , como garçons, porteiros, motoristas , era um gesto de humanidade, um respeito às diferenças sociais. Mas o problema nunca esteve em mim. O problema sempre esteve na forma como os homens entendem essa simpatia.

Com o tempo, percebi que um "bom dia" sorridente pode ser interpretado como um convite. Que um simples ato de educação pode ser confundido com flerte. Que o espaço dado , mesmo que mínimo , é sempre visto como uma brecha para a invasão.

O problema não está em nós, mas sempre recai sobre nós!

O cenário se repete. Você conhece alguém que trabalha por perto, o cumprimenta cordialmente, e logo vem o primeiro elogio exagerado: "a princesa do bairro", "a linda de Ipanema". No início, você ignora, porque a gente aprende a minimizar essas coisas. Depois vem um toque, um abraço apertado, um beijo melado na bochecha que você não pediu.

A fronteira entre a cordialidade e o abuso se rompe sem que você tenha feito nada para isso. O que era um cumprimento educado se transforma em uma investida invasiva, que te obriga a se perguntar: será que eu deveria ter sido mais seca?

Essa é a grande violência silenciosa que mulheres enfrentam todos os dias. A culpa sempre volta para nós. Porque a sociedade nos ensina que devemos ser educadas, mas não tanto. Que devemos ser simpáticas, mas sem parecer acessíveis demais. Mas quem decide esse limite?

E a resposta, infelizmente, é sempre a mesma: os homens.

O mais revoltante é que isso não acontece com mulheres. O relacionamento entre mulheres na sociedade é totalmente diferente. Podemos nos chamar de "amor", "gata", "flor", "linda", e nada disso se torna um motivo para ultrapassar limites. Podemos elogiar umas às outras sem medo de sermos vistas como vulneráveis.

Porque quando você elogia uma mulher, a relação só melhora. Quando você elogia um homem, a relação muda. O simples fato de demonstrar empatia se torna um pretexto para uma aproximação indesejada.

Isso não significa que todo homem é um predador. Mas significa que todo homem foi ensinado a entender sinais de forma distorcida. O que para nós é apenas educação, para eles pode ser um chamado.

E é aí que entra o perigo.

Muitas mulheres evitam pensar no pior, porque não querem parecer exageradas. Mas no mundo em que vivemos, ser exagerada pode ser o que te mantém viva.

O problema não está apenas no homem que se sente no direito de passar a mão em você porque você foi gentil. O problema está nos que vão além, nos que enxergam essa simpatia como uma permissão para algo pior.

O tráfico de mulheres e o tráfico de órgãos podem parecer extremos dentro desse contexto, mas não são. Sequestros, abusos e desaparecimentos muitas vezes começam com um sorriso, com um pouco de atenção dada ao homem errado. A simpatia pode ser a primeira porta aberta para o perigo.

E antes que alguém diga que isso é paranoia, vale lembrar: quantas mulheres já sofreram alguma forma de violência por acharem que estavam apenas sendo educadas?

A solução para isso não é simples. Não dá para viver em estado de alerta constante, mas também não dá para ignorar o que acontece ao nosso redor. Por isso, precisamos desnormalizar essa cultura.

Não é nossa culpa que os homens confundam simpatia com interesse. Mas é nossa responsabilidade nos proteger disso.

Se isso significa ser mais fria, que seja. Se significa evitar contato visual, que seja. Se significa não retribuir elogios de homens na rua, que seja.

Porque no fim do dia, ser mulher nesse mundo não é só sobre existir, é sobre sobreviver.

Trago Fatos, Marília Ms.

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