Descascando a Realidade: Entre Alzheimer, Ultraprocessados
A aparição de Marcelo Rubens Paiva no “Roda Viva” não pode ser vista apenas como uma entrevista, mas como um espelho das inquietações de nossa contemporaneidade. Ao abordar temas tão pessoais quanto a experiência com a doença de sua mãe , o Alzheimer , e, em seguida, expandir a discussão para epidemias silenciosas e questões alimentares, Rubens Paiva convida-nos a refletir sobre os caminhos que percorremos enquanto sociedade. Essa reflexão crítica se estende, ainda, à influência de substâncias químicas e à universalidade do consumo de alimentos ultraprocessados, que, segundo alguns especialistas, estariam contribuindo para uma deterioração gradual da nossa saúde mental e física.
Marcelo Rubens Paiva, conhecido por sua obra "Ainda Estou Aqui", transformada posteriormente em um filme com Fernanda Torres, utiliza sua trajetória pessoal como uma ferramenta para iluminar a complexidade dos desafios modernos. Sua fala no “Roda Viva” sobre o Alzheimer , uma doença que o tocou de forma íntima por meio da experiência de ver sua mãe enfrentar o problema ,vai além do relato familiar. Ela se torna um manifesto de uma geração que se depara, diariamente, com perdas, mudanças e a sensação de que o tempo pode ser um inimigo implacável.
Ao expor sua dor e, ao mesmo tempo, apontar para uma epidemia que parece crescer sem explicação única, Rubens Paiva lança mão de uma crítica contundente: se antes discutíamos a “crise” a partir do envelhecimento natural, hoje, questiona-se se não haveria forças externas, muitas vezes ocultas, contribuindo para o declínio de nossa saúde cerebral. Essa postura, ao mesmo tempo pessoal e universal, desafia o espectador a repensar não só a fragilidade do corpo humano, mas as condições ambientais e sociais que o cercam.
O Alzheimer, historicamente associado ao avanço da idade, vem sendo, cada vez mais, colocado sob outra perspectiva: a de uma epidemia misteriosa que afeta a todos, independentemente da idade avançada. Alguns argumentam que o aumento dos casos está relacionado ao simples envelhecimento da população. Contudo, há uma corrente crítica que propõe que o problema vai além do natural e aponta para fatores modernos, tais como a presença de microplásticos, medicamentos e, principalmente, alimentos ultraprocessados.
Essa visão convida à reflexão sobre a possibilidade de que o declínio cognitivo seja, em parte, resultado de um ambiente tóxico. Se, em décadas passadas, discutia-se o impacto do alumínio, hoje a pauta se direciona para um coquetel de substâncias químicas, muitas vezes inofensivas em pequenas doses, mas potencialmente devastadoras quando combinadas e consumidas em larga escala. Essa abordagem não só denuncia uma realidade alarmante, mas exige uma revisão urgente dos processos de produção e consumo em nossa sociedade.
O debate sobre alimentos ultraprocessados ganhou força em um contexto em que o consumo de produtos industrializados se tornou universal. O livro Gente Ultraprocessada, de Chris Van Tuleken , médico formado em Oxford e com um currículo que inclui experiências com a Unicef e a OMS , é uma obra que mergulha fundo nessa problemática. Nele, Van Tuleken expõe como os salgadinhos, refrigerantes, biscoitos, barras de cereal e tantos outros produtos repletos de aditivos, corantes e outras substâncias químicas atuam de forma insidiosa na saúde do consumidor.
Ao explorar a ideia de que um “coquetel” de aproximadamente 10 mil substâncias pode estar comprometendo o funcionamento do nosso cérebro, o autor aponta para uma realidade em que os efeitos adversos não se manifestam de forma imediata, mas se acumulam ao longo dos anos. Entre as consequências descritas, estão a redução da fertilidade, o aumento do peso, a ansiedade, a depressão e diversas doenças metabólicas. Essa narrativa se alinha com a visão de que os ultraprocessados não são meros alimentos práticos, mas agentes que, lentamente, corroem a nossa saúde.
Além disso, a crítica se intensifica ao se considerar o poderio da indústria alimentícia. O lobby massivo e o financiamento direcionado a pesquisas tendenciosas dificultam a realização de estudos isentos que possam, de fato, comprovar ou refutar as hipóteses ligadas à deterioração da saúde decorrente desses alimentos. Em um cenário onde a exposição é universal e a ingestão desses produtos é quase inevitável, a sociedade encontra-se em uma batalha silenciosa, mas de consequências potencialmente devastadoras.
Ao observar a trajetória de Marcelo Rubens Paiva e suas reflexões no “Roda Viva”, é possível notar uma convergência entre o pessoal e o político, entre o íntimo e o coletivo. A exposição do sofrimento causado pelo Alzheimer , inicialmente um tema profundamente familiar , se transforma em uma denúncia de um problema de saúde pública que afeta a todos. Essa narrativa nos força a questionar não apenas os mecanismos biológicos do envelhecimento, mas também as influências externas que podem acelerar ou agravar esse processo.
A associação entre a “epidemia” do Alzheimer e fatores como microplásticos e alimentos ultraprocessados serve para alertar sobre a urgência de repensarmos nossas práticas cotidianas. Se os avanços tecnológicos e as inovações industriais trouxeram inúmeros benefícios, eles também impuseram riscos que, muitas vezes, passam despercebidos no ritmo frenético do consumo moderno. Nesse sentido, a crítica de Rubens Paiva , que clama para “descascar mais e desembalar menos” , é um convite à reflexão e à ação. Ela nos lembra que é preciso olhar além das embalagens chamativas e dos discursos prontos para publicidade, buscando entender o que realmente está sendo ingerido, tanto literal quanto figurativamente.
A repercussão de tais temas não se restringe a debates acadêmicos ou entrevistas televisivas; ela se infiltra nas redes sociais, nos discursos de especialistas e, de maneira inquietante, no cotidiano das pessoas. Por exemplo, o pediatra Daniel Becker tem alertado, através de seus posts e declarações, para os perigos dos ultraprocessados, enfatizando a presença de corantes e aditivos que alteram não apenas o paladar, mas também o equilíbrio biológico. Essa preocupação é compartilhada por muitos que, à luz de estudos recentes e de evidências científicas, começam a compreender a amplitude do problema.
A discussão, portanto, não se limita à esfera da saúde individual, mas se expande para o campo das políticas públicas e das práticas de marketing. Em um mundo onde o consumo desenfreado é incentivado e a indústria exerce uma influência quase incontestável, torna-se imperativo que governos, organizações de saúde e a própria sociedade civil busquem alternativas que priorizem o bem-estar coletivo. Esse movimento exige transparência na rotulagem dos alimentos, rigor na fiscalização das práticas industriais e, sobretudo, um comprometimento ético que coloque a saúde humana acima dos lucros imediatos.
Um dos pontos mais críticos nessa discussão é a dificuldade em se estabelecer uma relação de causalidade entre a exposição a substâncias químicas e o surgimento de doenças crônicas. A universalidade do consumo de ultraprocessados e a presença de lobby da indústria tornam extremamente desafiador o financiamento e a realização de estudos independentes. A complexidade dos dados, a variabilidade dos hábitos alimentares e a sobreposição de fatores ambientais dificultam a criação de um cenário conclusivo.
Essa situação coloca pesquisadores e profissionais da saúde em uma posição delicada: por um lado, os indícios e relatos são alarmantes; por outro, a falta de dados robustos impede a formulação de políticas públicas mais incisivas. Assim, o debate se torna um campo de tensões entre interesses econômicos e a necessidade urgente de proteção à saúde pública.
A fala de Marcelo Rubens Paiva no “Roda Viva” é, sem dúvida, um chamado à consciência. Ela nos convida a mergulhar em questões que transcendem o campo da biografia e tocam as raízes da nossa existência coletiva. Se a experiência pessoal de enfrentar o Alzheimer , seja em família ou na comunidade , se torna um catalisador para discutir problemas de saúde pública, então é imperativo que não permaneçamos inertes diante das evidências que apontam para uma epidemia silenciosa.
Ao entrelaçar a discussão sobre o Alzheimer com os perigos dos ultraprocessados, dos corantes e dos aditivos químicos, somos levados a questionar as bases do modelo de desenvolvimento contemporâneo. É uma análise que vai além do simples consumo de alimentos ou da exposição a riscos biológicos; é uma reflexão sobre como, na ânsia por conveniência e produtividade, abrimos mão de parte da nossa saúde e bem-estar.
Portanto, ao escutar as palavras de Rubens Paiva , e, por extensão, de especialistas como Chris Van Tuleken e Daniel Becker , somos instados a “descascar mais e desembalar menos”. Essa metáfora, simples e poderosa, nos desafia a olhar por trás das embalagens brilhantes do consumismo moderno e a reconhecer que o verdadeiro cuidado com a saúde requer uma atitude de desvelamento: questionar, investigar e, sobretudo, agir em prol de um futuro onde o bem-estar coletivo seja prioridade.
Essa crítica, profunda e multifacetada, evidencia que os desafios do nosso tempo não são apenas biológicos, mas também éticos, políticos e culturais. Em um cenário onde a industrialização e a tecnologia caminham lado a lado com a degradação ambiental e o enfraquecimento dos vínculos sociais, é imperativo que cada um de nós adote uma postura vigilante e crítica. Afinal, a saúde , seja ela mental, física ou social , é um bem precioso que merece ser protegido com a mesma intensidade com que buscamos o progresso.
Trago fatos, Marília Ms
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