Cancelamento à Italiana: Lições de Responsabilidade e Ética para o Mundo Digital Brasileiro
Na Itália, o cancelamento não é apenas um termo da internet, mas um mecanismo real de responsabilização que impacta diretamente a vida e a carreira dos influenciadores. Se o cancelamento no Brasil funcionasse da mesma forma, dificilmente veríamos tantos influenciadores recorrendo à polêmica como estratégia para alavancar seguidores e engajamento. Esse contraste revela profundas diferenças culturais e estruturais entre os dois países, além de levantar questões essenciais sobre ética, responsabilidade e o verdadeiro papel dos influenciadores na sociedade.
Um exemplo marcante dessa realidade é o caso de Chiara Ferragni, considerada a primeira influenciadora digital. No ano passado, Chiara firmou uma colaboração com a Baloco, uma marca italiana tradicional de doces. A campanha prometia uma doação de valor X, criando uma expectativa de compromisso social e transparência com o público. Contudo, quando os seguidores descobriram que o que fora anunciado não correspondeu à execução dos fatos, a reação não tardou: a indignação se espalhou, e a mobilização popular foi tão intensa que se transformou num verdadeiro boicote nacional.
Na Itália, a pressão da opinião pública atingiu níveis impressionantes. Não apenas as redes sociais se inflamaram, mas também a sociedade demonstrou seu poder de transformação. As lojas que comercializavam produtos da marca associada a Chiara passaram a destinar esses itens a um “cantinho” específico, simbolizando uma clara dissociação do restante do acervo. Além disso, o valor dos produtos sofreu um drástico abalo, caindo de 30 para 7 euros. Tais medidas refletem como o cancelamento, quando efetivo, pode ir além do discurso virtual e impactar diretamente a economia e a credibilidade dos envolvidos.
Em contrapartida, o cenário brasileiro apresenta uma dinâmica bem diferente. Aqui, o cancelamento muitas vezes se restringe a uma narrativa virtual, sem as consequências tangíveis que vemos na Itália. Influenciadores que se envolvem em grandes polêmicas frequentemente são recompensados com um aumento expressivo de seguidores e engajamento, o que cria um ciclo perverso: o sensacionalismo é incentivado, e a ética passa a ser secundária. Essa cultura de "cancelamento leve" acaba por glorificar comportamentos irresponsáveis, transformando o conflito em uma ferramenta de marketing que, em vez de educar ou corrigir, propaga a desinformação e o descompromisso.
Esse contraste não é apenas uma questão de penalidade imediata, mas reflete como diferentes sociedades valorizam e exercem o poder da opinião pública. Na Itália, a mobilização popular tem força para gerar mudanças concretas, inclusive impulsionando a tramitação de projetos de lei que visam regular a conduta dos influenciadores e das marcas. Já no Brasil, a ausência de uma cultura de responsabilização efetiva e a própria estrutura das redes sociais fazem com que o cancelamento se torne, muitas vezes, um fenômeno passageiro, incapaz de produzir mudanças duradouras.
A trajetória de Chiara Ferragni, com todos os seus altos e baixos, serve como um alerta poderoso sobre o impacto das ações no ambiente digital. Ela ilustra como a quebra de um compromisso ético pode desencadear uma reação em cadeia, afetando não apenas a reputação pessoal, mas também a solidez econômica de uma marca. Ao mesmo tempo, evidencia que, sem uma estrutura que garanta consequências reais, como a imposta pela sociedade italiana, a busca por polêmicas pode se transformar em uma prática recorrente e até lucrativa no Brasil.
Essa realidade nos obriga a refletir: como é possível transformar o ambiente digital brasileiro num espaço onde a ética e a transparência sejam valorizadas tanto quanto a criatividade e a inovação? Será que a introdução de mecanismos legais mais rigorosos e a conscientização dos consumidores podem criar um ambiente onde a responsabilidade seja, de fato, a regra e não a exceção? É preciso repensar não apenas as estratégias dos influenciadores, mas também o papel das plataformas digitais e das instituições que regulam o mercado publicitário e o comportamento online.
Em última análise, a comparação entre a Itália e o Brasil evidencia que o cancelamento, quando aplicado de forma justa e efetiva, pode ser uma ferramenta poderosa para corrigir rumos e promover um comportamento mais ético no mundo digital. No entanto, sem a devida estrutura de fiscalização e a pressão social necessária, ele se torna apenas mais um artifício para ganhar visibilidade. Cabe, portanto, a todos nós consumidores, reguladores e profissionais do marketing , repensar nossos valores e buscar um equilíbrio que privilegie a integridade, o compromisso social e a responsabilidade acima do sensacionalismo e da busca desenfreada por números.
Essa transformação, ainda que desafiadora, é fundamental para que possamos construir um ambiente digital mais justo e sustentável, onde as ações e promessas dos influenciadores sejam acompanhadas por consequências reais e onde o compromisso com o público se sobreponha ao mero interesse em ganhar visibilidade a qualquer custo.
Trago fatos, Marília Ms
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