A Hegemonia da Branquitude e da Heteronormatividade no Sertanejo



O sertanejo, enquanto fenômeno musical e cultural, ocupa um lugar de destaque na cena brasileira contemporânea. Entretanto, ao mesmo tempo em que é um dos gêneros mais populares do país, ele carrega em sua estética e em sua estrutura tanto os resquícios de uma tradição musical que, originalmente, mesclava influências indígenas e africanas, quanto as marcas de um processo de "embranquecimento" e padronização que reflete , e reforça , as desigualdades históricas e culturais do Brasil. Mas por que hoje o sertanejo é tão hétero, branco e top?

Historicamente, a música popular brasileira é fruto de uma rica confluência de influências. Dos ritmos indígenas às batidas africanas, passando pelas harmonias e estruturas trazidas pelos colonizadores europeus, a cultura musical do Brasil sempre foi um caldeirão de elementos diversos. No entanto, o sertanejo, em sua trajetória, passou por um processo de adaptação e reconfiguração que privilegiou um modelo estético e comercial associado à branquitude e à heteronormatividade.

Esse "embranquecimento" não é acidental. Num país marcado pelo racismo estrutural, as expressões culturais que ganham visibilidade e espaço na mídia tendem a ser aquelas que se enquadram em padrões eurocêntricos, e, consequentemente, brancos. Assim, mesmo que as raízes do sertanejo estejam imersas em tradições que dialogam com a cultura negra e indígena, o produto final que é vendido e consumido em larga escala hoje é, deliberadamente, adaptado para agradar a um mercado que valoriza a estética da homogeneidade, o que implica a exclusão ou marginalização de outras referências.

Um dos aspectos mais curiosos desse fenômeno é como a própria estrutura musical do sertanejo reflete essa tendência. O formato das duplas , com uma voz principal acompanhada por uma segunda voz que frequentemente executa harmonias paralelas, como a terceira ou a sexta nota , não é apenas uma escolha estilística, mas também uma marca de uma tradição que se aliou a práticas musicais consideradas “mais refinadas” ou “populares” dentro de um paradigma europeu. Essa estrutura cria um som que, ao mesmo tempo em que é marcante e inconfundível, se distancia de ritmos e improvisações que seriam mais característicos de manifestações culturais oriundas das populações negras.

A homogeneidade sonora, onde a melodia principal é complementada por um acompanhamento quase sempre previsível, remete a uma estética que preza pela clareza, pela simetria e pelo cumprimento de padrões – qualidades valorizadas em uma indústria que busca a padronização para alcançar o sucesso comercial. Nesse sentido, a “branquitude” do som sertanejo não está restrita à imagem dos intérpretes, mas se estende à própria construção musical, que deixa pouco espaço para a experimentação e a ressignificação dos ritmos de origem.

Outro ponto central na crítica ao sertanejo contemporâneo diz respeito à sua forte aderência a valores heteronormativos. Num país onde a diversidade de orientações e identidades é uma realidade , muitas vezes reprimida ou ignorada pela cultura dominante , a representação do amor e da vida afetiva no sertanejo segue um modelo tradicional: relações heterossexuais, pautadas em uma visão conservadora de masculinidade e feminilidade, onde o machismo, a monogamia e a influência dos valores cristãos se fazem presentes de forma quase automática.

A imposição desse modelo não é apenas uma questão de gosto musical, mas um reflexo de um sistema social que valoriza a estabilidade e a “normalidade” conforme definida pelos parâmetros da elite branca e heterossexual. A própria ideia de que o sertanejo “é top” , no sentido de ser o ápice, o modelo a ser seguido, implica que qualquer desvio dessa norma é visto com desconfiança ou até mesmo rejeição. Assim, iniciativas como as duplas ou cantores que tentaram romper com o padrão heteronormativo , como o caso emblemático do sertanejo gay mencionado em reportagens da mídia , acabam sendo tratadas como anomalias, momentos de “chacota” ou simples exceções que jamais desconstroem o modelo dominante.

É importante notar que a mídia desempenha um papel fundamental na construção e manutenção desses padrões. O que é apresentado no exterior como “Brasil” muitas vezes não reflete a pluralidade cultural que existe no país. Enquanto ritmos como capoeira, samba e funk ganham visibilidade internacional  mesmo que, muitas vezes, de forma estereotipada , o sertanejo, por ser adaptado a um formato que agrada ao mercado de massa, se torna um produto cultural que, paradoxalmente, reforça uma narrativa de Brasil “branco” e tradicional.

Nesse contexto, até a bossa nova, que teve suas raízes na sofisticação e na busca por uma nova identidade musical, foi cooptada e ressignificada por uma classe que, ao mesmo tempo em que reconhece seu valor, se apropria dos créditos de uma cultura que, em sua essência, não é inteiramente branca. Assim, a imposição dos padrões musicais europeus , e, consequentemente, dos valores associados à branquitude permeia diversas camadas da produção cultural brasileira.

O fato de que o sertanejo contemporâneo se mantêm tão fiel a uma estrutura que exalta a heteronormatividade e a branquitude revela também os limites impostos por um mercado que não tem paciência para o desvio. A tentativa de romper com essa tradição, seja pela introdução de novas sonoridades, pela experimentação de linguagens mais diversas ou pela abertura para outras formas de expressão afetiva e de gênero, esbarra em um modelo já estabelecido e consolida o que pode ser chamado de “economia da conformidade”.

Essa conformidade não é apenas uma escolha estética, mas uma estratégia de sobrevivência num cenário em que o capital cultural e financeiro é concentrado em poucas mãos. A trajetória de artistas e grupos que tentaram inovar ou transgredir os limites do gênero serve de alerta para a rigidez dos mecanismos de poder dentro da indústria musical. Nos anos 90, por exemplo, para que duplas como “Rosa e Rosinha” pudessem sequer existir, era necessário enquadrar suas iniciativas como uma brincadeira , uma encenação para afastar a seriedade e, consequentemente, a ameaça ao modelo tradicional.

A crítica ao sertanejo como um gênero “tão hétero, branco e top” não se restringe a uma simples análise estética; ela revela as engrenagens de uma sociedade que, mesmo após séculos de lutas por igualdade e representatividade, continua a reproduzir estruturas de poder excludentes. A música, enquanto expressão cultural, carrega a responsabilidade de questionar e subverter essas normas, mas o caminho para a transformação é árduo quando os próprios mecanismos de produção e difusão cultural estão imersos em práticas discriminatórias.

Por outro lado, a própria popularidade do sertanejo pode ser vista como uma oportunidade para repensar os espaços de produção cultural. Se, historicamente, a obra musical foi “embranquecida” para se ajustar às demandas de um mercado hegemônico, talvez a atual transformação digital e a diversificação das mídias possam abrir espaço para novas vozes. O desafio está em resgatar as raízes genuínas , que incluem as influências africanas e indígenas , e permitir que outras formas de expressão se desenvolvam sem a necessidade de se enquadrar num molde pré-estabelecido.

O sertanejo, em sua forma atual, é um retrato complexo de como a cultura pode ser moldada e, ao mesmo tempo, limitada por forças sociais, políticas e econômicas. Sua “brancura” não se restringe à imagem dos artistas, mas permeia a estrutura musical e os valores que ele promove , valores que reafirmam a heteronormatividade, o machismo, a influência cristã e uma visão tradicional de monogamia. Em um país onde a diversidade é uma marca intrínseca, essa hegemonia cultural revela as cicatrizes do racismo estrutural e dos processos históricos de exclusão.

Repensar o sertanejo é, portanto, repensar o Brasil. É questionar a forma como o que é considerado “popular” acaba sendo sinônimo do que é “aceitável” para uma elite que detém o poder simbólico. É também uma chamada para que novas narrativas possam emergir , narrativas que abracem a pluralidade, que se permitam a transgressão e que não se sujeitem ao imperativo de agradar um mercado que valoriza a uniformidade. Enquanto isso, o debate sobre por que o sertanejo é tão hétero, branco e top permanece como um espelho crítico da sociedade brasileira, convidando-nos a refletir sobre os caminhos para uma cultura verdadeiramente inclusiva e representativa.

Trago fatos , Marília Ms.

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